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Cyro dos Anjos profetiza a Bossa Nova
Li apenas dois livros de Cyro dos Anjos, mas isso bastou para que o considerasse meu escritor brasileiro preferido (até porque li mais da metade da sua obra ficcional, restando apenas o romance derradeiro Montanha).
Sua narrativa é introspectiva, com tons de crônica, polvilhada com dados comentados sobre vários episódios e figuras da cultura ocidental, tudo isso costurado por uma escrita refinada e também clara.
Amanuense Belmiro é sua obra prima, mas Abdias tem inúmeros méritos. E um dos que mais me impressionaram (apesar de ser bem sutil, a princípio) foi o fato de Cyro, através de seu alter-ego Abdias, fazer uma verdadeira profecia sobre o surgimento da bossa nova, movimento musical que acabou por batizar e se compor como um gênero à parte.
O romance data de 1945, enquanto que o tiro de largada para a bossa nova foi um compacto com duas músicas de João Gilberto, lançado quase quinze anos depois, em agosto de 1958.
O que Cyro faz, dentro do romance, é uma breve análise do samba, onde ele elenca pontos que o desagradam no estilo, enquanto vislumbra possibilidades que cabem como uma luva no intinerário bossanovista.
Na cena criada por Cyro, Abdias aparece com um ponto de vista bem conservador sobre o samba.
Talvez ele se referisse, sem muito conhecimento do tema, aos sambas-canção carnavalescos, com uma repetição incessante de trechos específicos, harmonias previsíveis e letras com apelo popular.
Talvez não conhecesse os sambas de Noel Rosa e Ary Barroso, Adoniran Barbosa, e outros que já estavam em atividade na época do romance (Noel, inclusive, já havia falecido há alguns anos).
Talvez Cyro dos Anjos estivesse apenas compondo seu personagem, um amante da música clássica e da cultura erudita (interesses também de Cyro, pelo que se sabe).
De início, iria citar apenas o trecho específico sobre o samba. Mas decidi reproduzir aqui a página quase integral, que de certa forma rodeia o tema, e que demonstra bem a escrita fluida, saborosa e elegante do autor:
“Estávamos numa segunda-feira de carnaval, e uma camioneta com alto-falante rodava pela rua, derramando no ar sambas fanhosos, entre anúncios de pastas dentifrícias.
Chamei a atenção do Dr. Azevedo para a invasão crescente do samba e condenei o apoio que lhe davam alguns intelectuais. Prestigiando aquela manifestação primária da criação musical e conferindo-lhe foros de cidade, influíam para que o povo cada vez mais se distanciasse da boa música.
– O rádio é talvez o maior responsável por isso, concordou.
E contou-me, a propósito, que, para se ver livre de uma família de fanáticos radio-ouvintes, que faziam o aparelho funcionar o dia inteiro, teve de comprar a casa vizinha.
– Como vê, eu, velho democrata, tive de procurar solução no espírito latifundiário e imperialista da Glória. Mas não havia remédio. Quase me punham doido. E quando ouviam irradiações de partidas de futebol? Estas são de enlouquecer!…
O assunto excitara-o. Continuou, animado:
– Agora, não me apanham mais. Do contrato de locação faço sempre constar uma cláusula segundo a qual o locatário não pode utilizar-se do rádio senão umas duas horas por dia. E são sempre as horas em que não estou em casa.
Voltando à questão do samba, disse, depois, que talvez estivéssemos exagerando o mal que decorria de sua incrementação, através da atividade radiofônica. Quem sabe essa música elementar não seria preparatória de formas musicais superiores, no futuro? À semelhança do que já faziam alguns compositores brasileiros da atualidade, outros talvez viessem, mais tarde, extrair da ganga pobre do samba temas para concepções mais ricas…“
De fato, João, Tom e Vinicius o fariam. Mas a bola já tinha sido cantada antes, obscuramente, no rodapé desse belo romance do mineiro de Montes Claros.
Historinha real
Outro dia, estava eu a andar de bicicleta, quando leio a placa numa casinha simples: “vende-se chup-chup. 50 centavos com suco, 80 centavos com leite”.
Bateu uma nostalgia danada da infância e pré-adolescência, quando eu e meus amigos comprávamos chup-chup nas casas da vizinhança, as vezes chamando até mesmo de madrugada, fizesse frio ou calor. Tinha de morango, chocolate, coco, meu preferido era um rosa de creme holandês, cujos ingredientes ainda hoje me são desconhecidos, mas o sabor permanece memorável.
Parei como um menino em frente a casa. Enquanto contava as moedas animado, me peguei pensando “mas, peraí, com que água eles fazem o chup-chup? É feito com suco de pózinho, esses vagabundinhos de marca genérica? Polpa de fruta é que não é! E chup-chup de leite? Mas eu não tenho tomado leite! E se eu passar mal?”
“Ah, Rafael, você está ficando velho”, constatei enquanto voltava a pedalar.
A Arte como Caminho Espiritual – um breve ensaio
Sou um grande admirador do filósofo britânico Paul Brunton. Certa vez, li um aforisma dele que nunca mais esqueci, e transcrevo aqui de memória (acrescentando apontamentos meus).
Dizia ele que a religião é dispensável para o verdadeiro artista. Não que esse artista não possa ter uma; mas é que a arte pode servir como um caminho espiritual tão válido quanto a religião.
Se for um artista empenhado em executar uma obra cada vez mais próxima daquilo que sua alma sopra pra si mesmo (e não um embusteiro em busca de dinheiro fácil), então passos serão dados em direção a uma espécie de redenção.
Essa ideia soa meio messiânica, mas dois tipos de pessoas irão compreendê-la: os artistas – ateus ou não -, que algum dia produziram algo que lhes pareceu profundamente sincero; e as pessoas que, em dado momento, sentiram uma identificação de alma com uma obra artística.
E esse é o ponto que acho interessante em relação a caminhada espiritual da arte: as obras funcionam como faróis, como vislumbres de algo maior, algo que pode-se chamar de Deus, de paraíso, ou algo inominável. A verdadeira obra de arte pode inspirar todo tipo de pessoa (quem faz e quem aprecia) a se abrir para uma transformação interna.
“Venha, meu amor”: a história da canção celta “Siúil a Rún”
Uma tradução (em inglês) para o refrão em gaélico seria:
Uma versão alternativa (ainda irlandesa) da letra inclui esses versos:
Deus, essa epiderme
20out2013
Download da HQ Ana Crônica
Em 2009, editei a HQ, Ana Crônica, que lancei pela TGB Gráfica e Editora. Foi meu primeiro trabalho mais elaborado. A primeira (e única) tiragem se esgotou, e agora, comemorando 4 anos de seu lançamento, enfim a disponibilizo na internet.
Sobre Afetos e Jardins
Foto: Paloma Parentoni |
1 – Homens e Mulheres (e não “ou”, “versus”, “com”, e eteceteras)
Foto: Carla Evanovitch |
Agora sim, menciono essa tal dialética, que consiste de duas maneiras diferentes de se estar-no-mundo: de um lado, o homem, que assume seu “falo” como âncora para se fixar no oceano simbólico. Ou seja, ao ser ativo e ousado (fálico), o homem crê que é único, que é assim que marca seu lugar no mundo (não é a toa que animais mijam ao redor de seus territórios para demarcá-los. Já que estamos falando de falo, de onde vem esse xixi?). Esse é um lado da dialética. O outro, é a mulher que, teoricamente impossibilitada de ter um falo para lhe ancorar no oceano simbólico, navega (aparentemente) à deriva.
Foto: Paloma Parentoni |
Fica mais fácil visualizar essas diferenças a partir da oposição “razão X afeto”. O estar-no-mundo masculino geralmente se dá pela via racional, e é a razão que compõe o paradigma ainda em vigor nas sociedades humanas ocidentais (e patriarcais). Esse é o esqueleto que sustenta nossa vida comum, é nossa herança cultural. E é característica da razão ter limites bem definidos – “definir”, aliás, é o que a razão faz. A razão cria cercas, margens, regras. É através da razão que nos tornamos cidadãos “razoáveis”, ponderados, comedidos, cautelosos até. É uma necessidade de controlar a vida.
Foto: Carla Evanovitch |
Elas habitariam o que Deleuze chama de “zona de vizinhança”, esse espaço que se situa fora das margens simbólicas, das categorias que a razão adora delimitar. O tal “entre-lugar”, do qual fala Homi Bhabha[iii]. Para mim que sou mineiro, vizinhança tem um “quê” de encontro, de ir até a casa do vizinho tomar um café, prosear a toa, tem algo de esquina, clubes e amizades. É uma zona imprevisível, porque não podemos mapear o outro – apenas acolher ou rejeitar.
Foto: Paloma Parentoni |
Essa ótica do afeto, que quebra qualquer tentativa de delimitar racionalmente projetos de identidade, é facilmente detectada nas manifestações contemporâneas, que tomaram o Brasil em junho de 2013. Não quero entrar aqui em alguns méritos já muito discutidos na web (coisas como situar os protestos brasileiros em relação aos de outros países, nem relembrar os anteriores protestos de décadas no país para refutar a máxima “o gigante acordou”, blablabla.).
Foto: Carla Evanovitch |
Mas mesmo as depredações (que diversas evidências revelam ser infiltrações de grupos alheios) não parecem dizer muito sobre as manifestações. As vejo femininas também nessa dimensão do acolhimento, nessa postura de dizer “pode vir” (e que, brincando com as palavras, soa parecido com “pró-devir”). O encontro com o outro é a cola que une essas pessoas (não apenas jovens, vale lembrar). Não é a toa que Gilberto Gil se referiu a elas como “raves”. Há algo de celebração nisso tudo, de festivo. É bem pagão, dionisíaco, carnavalesco – subversivo não nesse sentido, mas nesse “sem-sentido”. Elas bradam contra os tecnocratas de terno bem passado, com discursos que se valem de palavras complicadas e rodeios retóricos, visando confundir mais do que explicar.
Foto: Paloma Parentoni |
Em O Trajeto do Afeto, a artista belo-horizontina Paloma Parentoni propõe o que ela mesma trata como um misto entre ação poética, intervenção urbana e oficina artística. Barquinhos de papel surgem como metáforas do afeto, como que representando ludicamente o próprio devir das relações entre os seres. Na fanpage do projeto no facebook, as fotos e vídeos evidenciam o quão lúdicas são essas intervenções. Não há limites para as práticas: quaisquer pessoas de qualquer idade, gênero, classe (e o que mais for definidor de identidade) podem participar, já que o cerne da oficina é a doação de afeto e suas implicações.
Foto: Carla Evanovitch |
A iniciativa de Carla Evanovitch também se dá por essa via do afeto, mas é mais subjetiva que a de Paloma. Sua proposta, intitulada Teremos um Jardim, trata do singelo cultivar de jardins imaginários (ou imaginados). O universo em que esse jardim existe é, nas palavras de Carla, “mais sensorial e menos descritivo”. Em vez de compensar seu desejo de semear com esses joguinhos de facebook tipo farmville (com todo o respeito aos apreciadores), ela optou por materializar poeticamente o ritual de plantio, do cultivo, da espera e do florescimento. Aqui, algumas das nossas práticas humanas são tratadas na metáfora dos jardins, como se lembranças fossem folhas outonais, e os girassóis fossem botões de puro afeto, dentre outras imagens que se possa imaginar (ou jardinar).
Foto: Paloma Parentoni |
Não sei se há, ou se devam haver, as esperadas conclusões. Assim como os barquinhos de Paloma e as imaginadas “árvores de anzóis” de Carla, as trajetórias em si já se significam. Os afetos não existem nas reflexões racionais a respeito do que representam – eles existem na própria doação desinteressada, na amizade e no amor… e o que mais pode-se dizer sobre isso? Os silêncios decerto expressam mais.
Páginas que se recusam a virar
Imagem por Keltruck Ltd (Flickr) |
Olhando o Clube por Outras Esquinas
Imagem por Diego (Paseo Común! – Flickr) |