Arte, uma questão de fé

Não importa qual a sua experiência com uma forma de arte, quantos anos lide com isso, se tem formação avançada naquela modalidade de expressão, e muito menos a quantidade de prêmios alcançados… se, num determinado dia, você se arrisca naquela mesma arte e nada de significativo acontece, o efeito disso pode ser devastador para seu ânimo.

O escritor J.R.R.Tolkien tem um livro chamado Ferreiro de Bosque Grande, que narra a história de um personagem que tinha acesso do mundo da Terra-Fada, mas, ao envelhecer, as regras mudam: é preciso fazer um novo banquete que irá conceder o direito de acesso à esse mundo mágico por pessoas mais jovens. Este foi o último livro escrito por Tolkien, e pode ser interpretado como uma metáfora do ofício criativo.

O personagem do Ferreiro seria como que um artista, alguém que, na juventude, recebeu o dom de acessar um mundo mágico e exótico. No fundo, é isso que cada artista faz ao exercer seu ofício: com seus dedos e sua mente, criam novos mundos, e conseguem acessar uma espécie de realidade paralela. Abrem fendas no real.

Só que, seja pela idade ou por outro acontecimento, esse acesso subitamente pode não se tornar possível como era antes. É como se o artista, mesmo ainda capaz de repetir o ritual de acesso ao mundo paralelo, não conseguisse mais abrir o portal. No caso de músicos ou atores, ainda há a possibilidade de tocar obras compostas anteriormente, pois tratam-se de obras performáticas. Mas a metáfora do Ferreiro de Bosque Grande refere-se ao específico ato de composição e criação em especial.

Esses dias, estou retomando algumas das minhas atividades artísticas, depois de dias sem conseguir praticar. Dias não, semanas. Em alguns casos (como o do desenho), seriam meses. E o que acontece é o seguinte: o desenho até sai, o texto sai, a música também sai. Mas você não se sente arrebatado. O portal parece não se abrir. Você duvida daquele dom que você tinha certeza que existia passando por suas veias. Onde está a eletricidade? Porque os pêlos do meu braço não se arrepiam como antigamente?

A pandemia também foi um balde de água fria para boa parte dos artistas, e isso não passou incólume para mim. O que é engraçado, porque, no início, a pandemia me gerou muito tempo livre, mas eu passava boa parte desse tempo angustiado com tudo que estava acontecendo, preocupado com o bem estar de pessoas que amo. Com o tempo, a sensação de normalidade foi sendo gradativamente retomada, mas não de todo. E, por diversas circunstâncias, apesar de ainda trabalhar remotamente, foi-me designada uma quantidade enorme de trabalho. Passei meses lidando com atividades repetitivas e burocráticas.

Daí você tem algumas brechas de tempo livre, mas a criação não flui como antes. Assistir um filme ou ler um livro não causa a adrenalina de outros tempos. É como se a capacidade de sentir estivesse meio embotada. Uma espécie de atrofia dos sentidos ou do espírito.

E não é algo que adianta forçar. A fluidez dessa energia não depende totalmente da pessoa. Na verdade, até que há algo que podemos fazer: continuar praticando. Mas não ocorrem garantias. O ofício da criação é um tiro no escuro. Não é algo utilitário. É como ter filhos: você não escolhe como eles serão. Alguns detalhes podem ser direcionados, mas são poucos.

Existem artistas que forçam um ato de moldar suas criações, tentam executa-las de acordo com parâmetros bem definidos. Mas isso resulta em golens sem alma. Veja a música comercial atual: é feita por algoritmos, fórmulas, sequências de acordes já convencionalizadas, temas manjados, etc. Isso até pode resultar em vendas e em sucesso de público, mas não vai sobreviver ao teste do tempo. Não existe hype ou marketing que faça com que gerações seguintes continuem consumindo uma obra ou um artista específico. Só sobrevive ao tempo quem tem algo legítimo a oferecer.

Eu já tentei forçar músicas a soarem exatamente como eu queria. Nesse momento, ouvi uma voz em minha consciência, dizendo mais ou menos o seguinte: “Rafael, você chegou a uma bifurcação. É hora de decidir qual caminho vai seguir. Essa estrada aqui é exatamente como você queria que fosse, tem todas as curvas e retas que você concebeu, e a quantidade e o tipo das árvores e pedras no entorno são exatamente como o seu planejado. Só que, no fim, há um despenhadeiro e você terá que pular nele – porque, você sabe, se algo está feito, está feito, e não é mais possível voltar atrás”.

“Porém, você tem esse outro caminho. Eu sequer posso lhe antecipar o que virá. Podem ser curvas, ou uma reta enorme, podem ter morros, animais peçonhentos, você pode até correr risco de vida, ou encontrar um tesouro depois do arco-íris. Pode ser tudo isso, ou nada disso, ou outra coisa completamente diferente. Quem sabe? Ninguém. Mas você pode saber. Basta escolher”.

A criação é um exercício de fé. Por isso pensadores como Paul Brunton dizem que, se você é um artista de verdade, não precisa ter uma religião se não quiser. Aquela matéria prima inominável com a qual você brinca em segredo é uma forma de entrar em contato com a mesma força que chamamos de Deus em outras tradições.

Nesse caso, basta definir o que se entende por “artista de verdade”. Penso que sejam aqueles artistas que não tem compromissos externos. Não estão dispostos a abrir concessões. E que querem conhecer melhor a si mesmos através da ferramenta da criação. Não sei se essas definições esgotam o tópico da discussão, mas me parecem apontar na direção correta.

Ainda que eu tenha uma religião e tenha fé em um Deus e em uma providência divina, a arte tem sido minha âncora nesse mundo. É o que traz sentido para tudo. Quando consigo acessar essa Terra-Fada, o mundo parece bom. Nem mesmo as notícias ruins na TV conseguem nublar essa sensação de completude. É engraçado: você não tem as respostas do universo, você continua submisso ao mistério que paira sob as cabeças de todos os seres vivos desse planeta. Porém, a plenitude torna-se palpável como o sabor de uma fruta.

É como se, ao criar e se ver satisfeito com sua criação, você criasse também um duto que te conecta direto com aquela realidade sublime da sua fé. O céu? O Nirvana? Não adianta buscar respostas assim tão objetivas. É algo para se sentir, apenas. É uma experiência, e ela é particular. Uma vez que a tenha sentido, passará toda a sua vida procurando por aquilo de novo. Não existe chocolate ou uísque envelhecido que lhe proporcione a mesma coisa.

E aqui estou eu, tentando novamente chegar nesse estágio, mas sem saber se terei tempo livre ou mesmo disciplina para continuar arando essa terra e tornando-a fértil para que algo possa florescer. O vazio de perspectivas não é tão vazio assim – ele é algo, é um sentimento real. E eu o sinto agora.

Mas não pretendo me esquivar. Se eu quiser chegar em algum vale elevado, eu precisarei caminhar pelos grotões e ravinas – esse é o preço a se pagar. É como a vida é. Porque reclamar das partes menos glamorosas do percurso? Conte algumas piadas para si mesmo enquanto a neblina é densa. Cante uma canção bonita. Ou não faça nada: apenas observe como a névoa é branca e espessa. Será que consigo amar o meu vazio?

Nessa pandemia, tive uma percepção muito interessante. Logo que a vida social ficou reduzida à quatro paredes, comecei a ter vislumbres da minha antiga vida – me refiro à adolescência e aos vinte e poucos anos. E havia um desejo de estar lá novamente, ou de viver algo parecido. Mas o curioso nisso tudo é que, naquela época, eu me sentia infeliz – e, as vezes, mais do que infeliz: miserável. Algumas épocas foram de sofrimento muito profundo. Crises de pânico, auto estima em frangalhos e poucas razões aparentes para seguir em frente.

Olhando em retrospecto, porém, tudo aquilo parece simpático e até mesmo amável. Consigo sentir carinho pelo “eu” daqueles tempos. Se pudesse, gostaria de abraça-lo e dizer que tudo vai dar certo no futuro. Não que vá dar certo o tempo todo, mas isso não importa. Mesmo que não “dê certo” no sentido que o capitalismo ou os coachs defendem, mesmo que não seja uma medalha ou um zero a mais em sua conta bancária: poxa, estamos falando da sua vida. É o solo onde você pisou, são os seus familiares e os seus amigos. Você fez o que pôde, você riu das piadas certas, mesmo quando eram as erradas. Criou algumas músicas bobas no colégio, para caçoar de um colega, decorou fórmulas matemáticas que nunca usou na vida prática, assistiu programas de TV em dias de chuva, varou madrugadas tocando violão e bebendo sangria de boi. Alguns eventos foram traumáticos. As cicatrizes podem ter demorado para sarar. Mas, na sala de espera do hospital, alguém te fez sorrir, e aquela criança no colo da mãe parecia dormir um sono tão gostoso. Imagine só se você pudesse deixar seus problemas de lado por um ou dois minutos. O sono daquela criança poderia ser o seu. Ou não: mas mesmo que você sequer bocejasse, aquela inocência de olhos fechados ainda poderia te fazer sorrir.

A consciência do tempo te impede de ser tão impetuoso quanto você era naqueles anos de juventude. Os jovens fazem coisas tão estupidamente ousadas porque acham que nada de errado vai acontecer. No futuro, os cabelos brancos te fazem despertar desse sonho de se achar inquebrantável. Você descobre que os prazos de validade não existem apenas nos produtos vendidos no supermercado. E, como tudo na vida, isso pode ser uma bênção e uma maldição. Por um lado, você perde certa dose de inocência. Por outro lado, você descobre novas maneiras de amar e de ser compassivo. Cresce dentro de você uma percepção do valor de estar vivo e de poder ser alguém no mundo. Mesmo que você seja uma pessoa marginalizada, que sofre, que não possui nada para se orgulhar, mesmo assim é possível considerar que as circunstâncias todas ao redor da sua vida te darão uma perspectiva única. Esse modo de ver as coisas é só seu. É seu mundo mágico. É a chave para sua Terra-Fada.

O paraíso da criação não é feito apenas de lembranças harmônicas. É preciso muita dor, pus e angústia na mistura. Um céu com anjos e demônios. Fazer arte é como olhar para a vida sem estar necessariamente nela – ou talvez ficar provisoriamente suspenso. Ganhar asas temporárias. Planar sob as preocupações. Meditar. E, no fim de seu transe, você tem uma obra de arte em mãos. Ela te lembra de que você pisou em solo sagrado por alguns minutos. Você a compartilha com o mundo, e as pessoas te agradecem por isso. Mas a melhor parte já aconteceu, e você estava sozinho – mesmo que você pudesse sentir elos de afeto real com cada ser desse planeta.

É tão louco quanto eu digo. Mas, hah, vai você tentar explicar isso pros outros. Melhor postar em um blog ou jogar garrafas no oceano.