Retorno e possível fim dos efêmeros diários

Depois de tentativas de fazer uma espécie de “diário pandêmico” entre os dias 12 e 13 de dezembro, escrevo esse texto no dia de natal para constatar o fracasso desse discreto projeto. Percebi que essas tentativas de escrita se relacionam com péssimos estados de humor, daqueles em que os pensamentos mais sombrios seguem te acompanhando ao longo do dia.

Só que, a partir do dia 14, a criança aqui arrumou um quebra-cabeça capaz de lhe manter entretida: encontrei músicas que gravei há mais de dez anos, e comecei um projeto de “restaura-las”. Entre compromissos da universidade (continuei dando aulas e corrigindo trabalhos até ontem) e outras demandas da rotina, essa se tornou a minha tábua de salvação.

Mas hoje, apesar da data em si evocar sentimentos elevados, sinto-me mal o suficiente para vir até aqui e produzir mais um texto. É engraçado que o tipo de escrita que persigo seja de uma modalidade talvez estimulante para quem lê, decerto pela busca que eu mesmo empreendo de tentar me sentir melhor. No caso de não ver uma luz no fim do túnel, tento eu mesmo acender as minhas velas.

Nesses textos, tenho falado de arte, certamente por ser esse um tema que circunda meu espírito de um modo muito intenso. Mas sei que, por mais que falar disso seja algo caro à mim, tenho consciência de que estou fugindo de mencionar as questões mais pungentes por trás dos tais pensamentos sombrios. Não é falta de sinceridade aqui, mas apenas uma fuga de trazer assuntos perturbadores.

Isso tem uma razão que vai além da modéstia, ou da timidez, da covardia e de outras justificativas: é a consciência dos privilégios. Saber que estamos em uma época terrível para tantas pessoas. E não é apenas por culpa da pandemia, e sim por nós, brasileiros, termos cometido um equívoco gravíssimo em 2018, e nem preciso entrar em detalhes para que saibamos do que falo.

Se tantas pessoas estão desempregadas, passando fome, ou amargando sequelas de Covid, ou outros problemas que nem saberia citar, preciso colocar isso em perspectiva, e reconhecer que minhas angústias pessoais parecem pequenas. Talvez escrever isso em segredo, nesse blog lido por sabe quem, seja um modo de lidar com isso. De materializar um possível fio de sentido das coisas, ordenar os sentimentos por ordem alfabética, enfim, trazer qualquer tipo de racionalidade para esse turbilhão, e fazer isso longe de holofotes, na penumbra, no meu canto, sem incomodar outras pessoas.

É curioso que, mesmo escrevendo para não ser lido, ainda reluto em trazer esses problemas com clareza. Talvez seja a culpa católica tão presente nos mineiros. Mas soa-me como ingratidão, como uma incapacidade de perceber o motivo pelo qual estou vivendo tudo aquilo. Schopenhauer dizia que, ao chegar no fim da vida, uma pessoa é capaz de olhar para trás e entender o motivo pelo qual cada evento se deu ao longo de sua trajetória. Acho que a premissa é verdadeira, mas nem é preciso levarmos o fim da vida como exemplo. Se lembramos de algo acontecido há certo tempo, se temos força interior e boa vontade para refletir sobre esse acontecido sem se entregar aos traumas, podemos entender porque estava ali, naquele lugar, naquele tempo, esperando para que tropeçássemos. A chave para termos esse entendimento é o distanciamento. Pensar naquilo como se fossemos personagens de outrem. Sair de si. Provocar intencionalmente um estado de consciência que podemos atingir através da meditação, por exemplo.

Até mesmo agora, eu consigo entender porque estou vivendo tantas coisas que me afligem. Ao mesmo tempo, essas coisas cutucam em feridas. Só hoje, tomei consciência de dois ou três traumas de infância que me tiraram do sério recentemente. Como educador, fico pensando na seriedade de lidarmos sobretudo com jovens, e na delicadeza que o trato com eles exige. Uma palavra desajeitada na hora errada pode custar caro para outra pessoa. No meu caso, tem toda a questão de ter crescido no interior de Minas, uma região de mineradoras, com pessoas que possuem uma mentalidade extrativista e conservadora, com carga imensa de machismo e, em muitos casos, uma escassez de senso estético e de capacidade de abstração.

Só que mesmo essas dores me parecem justificáveis quando considero o senso de empatia que talvez seja fruto de tudo isso. Mas esse olhar é de agora. Já passei por várias fases: primeiro, um embate com essa mentalidade provinciana; depois, uma adequação e até mesmo reprodução disso; em seguida uma depressão profunda; e, ao longo dos anos, um embate saudável que foi moldando minha visão de mundo em um plano positivo, propositivo, e fértil no sentido nietzschiano – de ser capaz de me imbuir de vida, de potência de vida.

Ainda tenho algumas horas de natal, uma ceia (ainda que mais reservada, pois estou há dois anos sem viajar para Minas, e essa é uma das minhas angústias das quais prometi não falar), e espero trazer alguma luz para esse estado de espírito. Fico por aqui sem nenhuma frase de efeito ou qualquer esmero para esse texto. Seco, porém otimista.