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Nietzsche, profeta do Twitter?


Provavelmente, alguém já criou uma conta de twitter que reproduza aforismas de Nietzsche (não me darei ao luxo de procurar, prefiro arriscar essa hipótese quase que óbvia de que a conta existe). Seus trechos enxutos e polêmicos parecem ter sido feitas sob medida para a rede social de 140 caracteres.

Não que ele houvesse profetizado o limite de palavras, ou perseguisse qualquer estrutura reduzida, e muito menos que tenha sido um amante da síntese. Em seu livro Nietzsche como Obra de Arte, Rosa Dias discute como o estilo fragmentado do filósofo é menos uma vaidade de estilo, e mais uma afirmação de seus próprios conceitos já influenciando a própria forma do texto. Para ele, os tradicionais textos sistemáticos, com sua estrutura maciça e amarrada, engessam a reflexão livre, aprisionam os sentidos, e satisfazem apenas aos que cultuam o conhecimento acumulado.
Os amantes das palavras, que as saboreiam lentamente entre uma reflexão e outra, prefeririam a naturalidade e a força dos aforismas curtos. O caráter afirmativo e leve por trás de conceitos nietzschianos como “vontade de potência” já ficam claros na própria fragmentação do aforisma – na falta de continuidade, nos espaços em branco, tão caros à poesia e a música.
Em nosso século XXI, o pensamento de Nietzsche continuamente se revela atual, pungente, e sua mensagem ainda reverbera, dialoga profundamente com nosso contexto. Se levamos em consideração a lógica dos aforismas, isso ocorre não só no conteúdo, mas na forma (infelizmente, essa síntese ensaística favorece uma simplificação e uma deturpação do que é dito – e, nisso, o alemão é craque, visto que o nazismo foi um dos movimentos que mais se apropriou indevidamente de suas idéias).
Rosa Dias alerta, logo no início de seu texto, sobre como a escritura aforística “seduz os espíritos superficiais” (pág. 23), apesar do aspecto ainda mais complexo e aprofundado que tal escrita evoca. Um texto aforístico como o de Nietzsche costuma ser muito mais provocador que boa parte de ensaios sistemáticos e objetivos. Seus silêncios e vazios deixam lacunas que só podem ser preenchidas pelo leitor, favorecendo assim um rico aspecto interativo (outra característica bem afinada com nossa era virtual).
Os dois tipos de leitores que Nietzsche queria evitar ao escrever por aforismas são arquétipos bem reconhecíveis em nossas redes sociais contemporâneas. Rosa diz que, para o filósofo, “os piores leitores são, em primeiro lugar, aqueles ‘que agem como soldados saqueadores: retiram alguma coisa de que podem necessitar, sujam e desarranjam o resto e difamam todo o conjunto’, em segundo lugar, aqueles espíritos vulgares que tem um hábito repugnante de, na palavra mais profunda e mais rica, não ver senão a banalidade de sua própria opinião” (pág. 23). Qualquer semelhança com nossos feiciboquis não é só mera coincidência, mas é prova de que nosso senso comum sobre a civilidade de nossa sociedade é bem discutível.
Mas, diferente do bigodudo, me recuso a ser tão pessimista. Devemos nos lembrar que em meio aos BBBs e formadores de “xoxas doxas” que angariam tantos seguidores no twitter, encontramos diversas vozes ricas e estimulantes, que utilizam a limitação de espaço e a fragmentação da rede de modo positivo. Diversos poetas e comunicadores mais espertos já sacaram isso. Se eles não apresentam (ainda) uma lista de seguidores que ultrapasse os quatro dígitos, a culpa é menos da força de seus escritos, e mais porque o panorama sombrio prenunciado por Nietzsche, como já disse antes, soa tristemente atual. O próprio filósofo, caso nascesse hoje em dia e quisesse fazer uma conta na rede, provavelmente não faria muito sucesso. Seria só a versão virtual daqueles mendigos com placas do apocalipse que fazem o folclore das nossas praças interioranas. Entretanto, ainda que quixotescas pelas contingências na nossa época, pelo menos essas figuras do bem estão aí, compartilhando seu pensamento com aqueles que se interessam, ambos (destinatário e remetente) dispondo de meios mais ágeis de diálogo, graças a internet.
– foto extraída do blog http://namedidadosensivel.blogspot.com.br

O Lobo das Vertentes – um ensaio sobre Toninho Ávila


Faz tempo que quero escrever um texto sobre a vida e obra do amigo Toninho Ávila, também conhecido como Lobo Bruxo. Na verdade, nesse tempo que já completa mais de meia década de amizade (all things must pass…), creio que esse texto já vinha sendo escrito, inconscientemente. Faltava só passar para o papel (ou para a tela do computador).
Quando me refiro a vida e obra do Lobo, não pretendo me aventurar em redigir biografias. Quero dizer que em torno da sua figura carismática e peculiar, parece difícil distinguir o que é vida e o que é obra. Porque não se nota essa “quebra” entre o que Toninho expressa artisticamente e o que ele atravessa no cotidiano. Seu viver diário é arte; e sua arte fala do viver: ele habita em ambos, o tempo todo.
Isso lhe confere uma espontaneidade e um entusiasmo invejáveis (todos se assustam ao constatar que o Lobo já habita as Vertentes Gerais por sessenta e tantos verões…). A meu ver, Toninho é desta categoria de artistas autênticos e viscerais, como Lennon ou Van Gogh – ambos, inclusive, já retratados pelo “animal” em algumas de suas pinturas.
A arte de Toninho em várias de suas expressões (performance do cotidiano, pintura, poesia, ecologia, vida) carrega algo de rústico e de natural. Por rústico, entendo a técnica que o artista emprega em tudo que faz. Para seus detratores, o caráter “rústico” seria visto como heresia, falta de capricho, ou irregularidade estética. Contudo, tal rusticidade ganha força na espontaneidade, na sua atitude integral de vida e obra imbricadas, como um tecido de múltiplas linhas e de intensa estampa. Rústico como o grito de Lennon em “I´m So Tired” ou “Mother”; rústico como as pinceladas de Van Gogh, rústico como o barroco da São João del-Rei, que é terra natal do Lobo.
 
É daí que brota (e essa palavra não está aqui gratuitamente) seu aspecto natural, fruto também da espontaneidade. Toninho se identifica com tudo que é tão natural como ele; daí seu encantamento pela natureza, pelas árvores, flores, cachoeiras, serras e pássaros. Sua mãe conta como, na infância, Toninho chorou ao ver uma árvore sendo cortada. Anos depois, seria ele o responsável pelo plantio de diversas delas por toda a São João. Sua militância ecológica data de antes das atuais discussões sobre o cataclisma ambiental – pauta ideológica talvez mais urgente em nossa época, dentre tantos bla-bla-blas vazios.
A forma de Toninho estar no mundo assemelha-se, por vezes, a uma intervenção poética, com algo de lúdico e poético a um só tempo. Seu jeito, sua fala, gestos e palavras estão fora do tempo, além do espaço, fora da ordem – ecoando toda a loucura e a magia de tempos imemoriais, e até de tempos futuros.
Seu tempo é tanto a contracultura sessentista quanto a contemporaneidade digital. Seu espaço é universal – ou alguém enxerga diferença entre as fotos de Toninho nas cachoeiras de São João-del rei e as imagens do Woodstock? Em uma de suas frases seminais, disse “Sou EASY RIDER, mas nunca saí de CASA, tá ENTENDENDO??”.
Seu projeto estético de vida e obra ganha força justamente nessa integralidade, nessa vivência intermitente, que é prova viva de integridade para sua arte. Toninho parece habitar dentro do arquétipo do demiúrgo moderno, seja ele o Knulp ou o Lobo da Estepe da literatura de Hermann Hesse; ou o “fool on the hill” dos Beatles; e até mesmo o eremita do antológico Led Zeppellin IV.
E não venha relativizar as coisas quando se aventurar a conversar com o Lobo. Não arrisque confundir “Jesus com Genésio”. Autêntico e provocador, Toninho sempre tem algo a dizer, e nunca deixa escapar de vista a ética, ainda que intitule seu caráter como “multipolar”. Tá na dúvida?
            – Ou EL ou NÃO-EL – já dizia o NOEL………   
*
Conheça mais sobre o trabalho do Lobo Bruxo em seu site oficial e seu perfil no facebook!


Cantando e Decantando “Paisagem da Janela”


Foto: Teresa Duarte – Flickr da autora

O que é um mito? Para que serve? Há quem diga que o mito engana, e que acreditar em um Zeus no Olimpo como os gregos, ou em um Deus-Sol como os índios das américas, é ser alienado da realidade, dos fatos concretos. O que é mais estranho: os mitos, ou os fatos concretos? Depois da relatividade de Einstein, dá pra falar em coisas concretas? E mais: quem disse que os mitos não são fatos?

Prefiro a definição de Joseph Campbell, que diz que “nos mitos, encontramos personagens que ressoam dentro de nós, e usamos os mitos para criar ordem a partir da nossa própria experiência1“. Obras de arte podem criar e recriar mitos, podem fazê-los ressoar em corpos, mentes, corações e espíritos.
Nessa ótica, os mitos da mineiridade tem muito a dizer para quem quer apreender tais significados. Mais que uma bela melodia assobiável, a canção “Paisagem da Janela” é um veículo de diversos mitos mineiros, e o fato de seu significado ser meio vago possibilita diversas e amplas leituras. Arriscarei a minha.
Da janela lateral do quarto de dormir
O quarto de dormir é (ou deveria ser) o espaço onde nos afastamos da correria do mundo. A merecida pausa para lamber as feridas. Um local de contemplação, de faxina mental, de sossego. Ali, as contas para pagar, os compromissos sem fim, a correria do trânsito, a barulheira e o caos urbano; são fenômenos que ficam para trás.
A vida é correr atrás de algo, ter metas, sonhar e tentar realizar. Mas também é contemplar, apreciar o esforço, parar pra respirar e observar. Sem o momento de reflexão, qual o sentido de tanta conquista?
Para muita gente, Minas Gerais representa isso: seu espaço bucólico, interiorano, rural, seria esse lugar de repouso, um refúgio no meio das cadeias de montanhas, de onde a gente pensa na vida em meio ao aroma do alecrim e do fogão de lenha, degustando um copo de leite fresco, pão de queijo e café passado na hora.
A vida aponta pra frente, como a seta da flecha. Mas o vento que refresca, vem da janela lateral.
Vejo uma igreja, um sinal de glória
Vejo um muro branco e um vôo pássaro
Vejo uma grade, um velho sinal
Igreja, muro, grade, velhos sinais. Obras forjadas na pedra, por mãos humanas, mas que arriscam “um vôo pássaro”. Voam pela nossa mente, nos trazendo sinais de glória. Assim é o patrimônio: casas antigas, praças, ruas, calçamentos, a cidade. Assim como o sangue que nos é legado de geração em geração, o patrimônio nos fala de onde viemos. E em suas fissuras e vielas, podem também evocar profecias e dizer para onde vamos.
O patrimônio é identidade. A história é a liga que nos consitui enquanto seres sociais, enquanto pessoa inserida em um meio. Como diz o filósofo Ortega Y Gasset, “eu sou eu e minhas circunstâncias”.
Mensageiro natural de coisas naturais
Os mitos da mineiridade falam muito dessas tais “coisas naturais”. Como na canção de Nelson Ângelo, o mineiro tem “um gosto de fruta, um cheiro de mato, em meu (seu) pensamento2“.
Só o mensageiro natural pode falar das coisas naturais. Os “falsos profetas”, dos quais o apocalipse já alerta, surgem a todo momento, e querem vestir as maiores atrocidades como sendo coisas naturais. “A violência é natural”, brada um. “A pobreza é natural”, vocifera outro. “Compre isso”, “você precisa daquilo”, “faça desse jeito”, dizem os slogans publicitários.
A voz do vento, o reflexo das águas, a direção das labaredas: nada disso quer te convencer de nada. É o que é, é natural. São os genuínos mensageiros.
Quando eu falava dessas cores mórbidas
Quando eu falava desses homens sórdidos
Quando eu falava desse temporal
Você não escutou
Será que a sociedade vem ouvindo esse chamado dos mensageiros naturais? O que foi feito depois das cores mórbidas das enchentes, dos tsunamis, catástrofes naturais, dos buracos na camada de ozônio, doenças do corpo e da mente? Quem são os homens sórdidos: os que fazem a tragédia, ou os que a ignoram o temporal? Não podemos dizer que não fomos avisados. É honesto admitir que nós não escutamos.
Você não quis acreditar
Mas isso é tão normal
Sim, é normal. O que é natural, pode não parecer normal para os olhos já empaturrados de informação processada, do excesso de dados culturais.
É preciso que seja dito o que, em tese, é tão óbvio: o natural é tão normal.
Cavaleiro marginal lavado em ribeirão
Cavaleiro negro que viveu mistérios
Cavaleiro e senhor de casa e árvores
Sem querer descanso nem dominical
Seria um mito arturiano ressurgido nas Minas? Um membro de távola redonda ou irmandade religiosa; um Lancelot-tupiniquim-cristão-novo; lavado pela Senhora do Lago de Furnas; banhado pelo Ribeirão do Eixo de Avalon; que viveu mistérios insondáveis nessa Camelot-Gerais; configurado em senhor de engenho, casa e árvores; um trabalhador honrado e incansável?
Cavaleiro marginal banhado em ribeirão
Conheci as torres e os cemitérios
Conheci os homens e os seus velórios
Ou seria um Merlin; um demiurgo mineiro; um Viramundo; um décimo-terceiro profeta sem nome; maltrapilho errante; que em suas andanças através dos séculos pôde observar torres e cemitérios; e a ascenção e queda dos homens?
Quando olhava da janela lateral
Do quarto de dormir
Ao olhar da janela lateral, todos podemos assumir esses mitos que existem dentro de nós, como diz Joseph Campbell. Podemos ser os magos e guerreiros da nossa própria vida. Todos os sinos, cemitérios e igrejas de todos os tempos e espaços do mundo vivem em nós, em nossas moléculas, no pó de que viemos.
Não pergunte a ninguém por quem os sinos dobram: a igreja que você observa da sua janela lateral pode lhe responder.
*
Notas:
1 – CAMPBELL, Joseph. In: KELEMAN, Stanley. Mito e Corpo: uma conversa com Joseph Campbell. São Paulo: Summus, 2001.
2 – ÂNGELO, Nelson. JOYCE (intérpretes). Um gosto de fruta. In: Nelson Ângelo & Joyce. Disco. EMI Odeon: 1972.

Como matei Ray Bradbury

(baseado em fatos reais, e em uma dica de Pablo Gobira)

             Antes de mais nada, devo contextualizar a questão para o juri. Dizem que o ABC da ficção científica era composto por Asimov, Bradbury e Clarke. O A e o C já haviam batido as botas e se tornado lendas. Na noite do dia 05 de junho, o B era ainda a única divindade viva dentro do gênero. Ainda não era um deus ex-machina.
O mundo acreditava que Bradbury estivesse vivo – era o que estava escrito em enciclopédias e wikipedias. E estava, ainda. Quanto a mim, sequer sabia que ele era um deus da FC. Ou melhor, sabia de “ouvir falar”, mas não conhecia sua liturgia literária.
            Na noite de 5 de junho, procurei informações sobre Bradbury no google. Porque? A faísca do interesse foi acesa por um livro do autor chamado O Zen e a Arte da Escrita. Ao ler trechos dele, desinteressadamente, me peguei seduzido por seu enlevo. Basicamente, é um livro sobre as razões da escrita: porque e como fazê-la. O alto nível das considerações me faziam crer que Bradbury deveria ser, de fato, um autor instigante. Além de ser o grande ídolo de um dos meus escritores favoritos, Neil Gaiman. O google, como sempre, me forneceu a ficha corrida do homem, e me surpreendeu não só que estivesse vivo, aos 91 anos, mas que também continuava em plena atividade literária. Realmente um deus da FC.
            Eis que no dia 6 de junho, cheguei à rodoviária de Juiz de Fora, e com muito custo consegui achar uma passagem de ônibus disponível (véspera de feriado). Caminhando rumo à plataforma de embarque, dei de cara com uma notícia transmitida no telão central, inacreditável: morre Ray Bradbury.
Como podia ser? Tinha me interessado por ele meio que “do nada”, um dia antes! Fiquei em estado de choque. Seria uma falha na matrix?
Não sei se tenho culpa nessa história. Em minha defesa, alego a sincronicidade junguiana, a lei da atração, carma, e outros fenômenos que parecem ter saído de livros de ficção científica.
Se essa evidência não colar, vou ter que retroceder ainda mais no tempo. Acho que tudo começou há uns anos, quando ergui perigosos tótens (quais deles não seriam perigosos?). Depois de uma infância devotada aos heróis de quadrinhos e a todo tipo de ficção com elementos fantásticos, mágicos e extraordinários, eis que eu tinha sido picado pelo vírus do realismo. Passei a gostar de uma literatura mais calcada no cotidiano, de cinema noir, quadrinhos adultos, e a repudiar coisas que se distanciassem muito disso. Talvez precisasse gostar de coisas sérias por estar me levando muito a sério, vá saber.
            Com o tempo, esses tótens foram perdendo seu magnetismo, e me dei conta de que tanto o realismo quanto o absurdo dentro da ficção são feitos do mesmo barro. São diferentes só enquanto gênero, mas o caráter ilusório é tal e qual. Ambos só se tornam bem construídos e verosimilhantes quando o autor consegue amarrar bem sua trama. No fundo, eu tinha ficado “de pirraça” de muitos autores que poderiam ter tanto a me dizer.
            Reconciliado com alguns ídolos da minha infância, novamente tratei de ampliar meu leque de leituras, e foi aí que o B do ABC foi aparecendo aos poucos pra mim. Primeiro quando li um artigo que tratava de escritores de ficção científica que transcenderam o gênero, munidos de perspicácia e de genuínos méritos literários. Bradbury era citado com louvor. Meses depois, ao ler o livro de contos Coisas Frágeis, do britânico Neil Gaiman, me surpreendi ao vê-lo tecer infindáveis elogios a ele, e se referindo ao norte-americano como “um mestre da arte”. Por fim, eis que vivenciei o enigmático episódio do dia 05 de junho.
        
    — x —
            Julgamento encerrado. Agora é botar o leitor a par do veredicto. A promotoria entendeu que eu deveria ler Crônicas Marcianas para me redimir da absurda lacuna que arrastei durante anos. Para poupa-los do meu depoimento final, basta dizer que concordei com o júri sobre o grande valor da prosa bradburiana. 
No presente momento, minha pena já se encontra cumprida. A leitura de cada uma das peças que compõem Crônicas Marcianas me fizeram refletir sobre o delito, e a constatar o quanto foi equivocado ignorar um escritor de tal calibre.  
            Apesar dos pesares, percebo que foi inusitado e mágico ter me encantado pela primeira vez com um texto de Ray Bradbury talvez no exato momento em que ele se despedia do nosso planeta. E agora, enquanto ele provavelmente descansa numa sonda espacial ou em um universo paralelo, continuo a caça de Fahrenheit 451 e outras belezas.

Marillion: A carreira da banda passada a limpo

  

Esse texto, sobre a banda de rock progressivo Marillion, talvez não seja direcionado para seus fãs. Devo dizer que ele será mais útil talvez para os que se surpreenderam com o novo disco, Sounds That Can’t Be Made (2012). Ou para os que pretendem ir nos shows que eles farão no Brasil em outubro (depois de mais de dez anos sem pousar aqui). Imagino que servirá também para os que só conhecem seus grandes hits, como ‘Kayleigh’ e ‘Lavender’. E decerto pode agradar a quem busca um guia de referências para a história da banda.
Mas esse texto foi concebido – e é dedicado – para quem acha que a banda deveria ter acabado depois de Clutching at Straws (1987). Esse tipo de fã costuma ser identificado depreciativamente como “viúva do Fish”, referência ao inesquecível vocalista.
Marillion com Fish, na década de 80.
A obra-prima: Misplaced Childhood
Pois bem, dedico esse texto para (o)as “viúvas do Fish”. Espero que não se ofendam com o termo: em minha defesa, digo que também tive minha fase “viúva” do carismático e beberrão cantor escocês. Lembro-me que o primeiro disco que ouvi do Marillion, ainda no século passado, foi justamente seu canto do cisne, “Clutching…”, e isso bastou para que eu os colocasse no olimpo das minhas grandes bandas. E em seguida coroei a decisão ao me deparar com o atemporal Misplaced Childhood (1985) – e só quem o ouviu com atenção e deleite sabe do que estou falando. É o disco de ‘Kayleigh’ (um hit perfeito, na minha humilde opinião); talvez o grande album conceitual dos anos 80; é definitivamente o trabalho que fez os holofotes se voltarem novamente para o progressivo, numa época em que o estilo era crucificado por dez entre dez críticos.
Clutching at Straws, último disco com  Fish
O que ‘Misplaced…’ representa não é pouco, mas isso também pôde ter prejudicado a banda. A grandiosidade do album lançou uma grandiosa sombra sobre sua carreira, que perdura até hoje. Seu legado é ainda o combustível das “viúvas”. Graças a ele, enxerguei a “fase Steve Hogarth” com desconfiança por algum tempo.
O primeiro disco que ouvi com os vocais de Hogarth foi Brave (1994), e não gostei. Engoli Holidays in Eden (1991) porque era acessível, aliando o caráter comercial com certo apuro sonoro. Com o tempo, fui aprendendo a apreciar esses dois trabalhos, e a criar boa vontade de atirar longe algumas das peças de roupas pretas que marcavam minha “viuvez”.
Lembro-me de ter comprado Anoraknophobia (2001) logo que foi lançado (eram tempos onde a banda ainda lançava discos em lojas de música, e tempos em que existiam lojas de música). Nessa época, tinha meu palpite para a contagem de pontos do embate “Fish/Hogarth”, e não acreditava em empate no placar: pra mim, Fish ainda liderava. Tudo bem que Seasons End (1989) tinha preciosidades do quilate de ‘Easter’; tudo bem que gostava de ‘Holidays…’, tudo bem que aprendi a enxergar o (enorme) valor de ‘Brave’, e muito lentamente descobri que Afraid of Sunlight (1995) vai muito além de ‘Beautiful’.
(um parênteses: me parece ser tão incrível ver uma banda de rock progressivo emplacar um hit em meados dos anos 80 – ‘Kayleigh’ – quanto ver a mesma banda repetir a façanha no olho do furacão grunge dos anos 90 – com ‘Beautiful’. Fica aqui um pequeno adendo sobre esse mérito)
Talvez meu julgamento sobre estivesse manchado pelos discos que o Marillion lançou entre 1997 e 1999. Até hoje tenho preguiça de This Strange Engine (1997) (apesar da maravilha que é ‘Estônia’), e acho que Radiation (1998) foi uma tentativa muito ruim de se inspirar em bandas como Radiohead. O resultado de marillion.com (1999) me pareceu talvez melhor, mas muito aquém do que a banda podia chegar. Vale lembrar que, nessa época, eles estiveram muito próximos de encerrar as atividades.
É aí que, em 2004, surge um “marco zero” na carreira da banda, o momento em que, a meu ver, a balança entre a contribuição do Marillion de ontem e de hoje se iguala. É o ano de Marbles (2004), que reinventa a carreira do quinteto. Nesse disco, estão os melhores elementos do seu lado pop, e também do lado progressivo. Faixas acessíveis, grandes suítes, letras inspiradas, boas performances de cada integrante. E tudo soa integrado, sem a sensação de ser uma colcha de retalhos. Ouvir esse disco com atenção é um irresistível convite a abandonar de vez a viuvez do passado, e perceber que o menino com bolinhas de gude nos olhos não deve nada para o palhaço Jester.
O que salvou o Marillion foi o crowdfunding, numa época em que o hábito estava longe de ser a moda que é atualmente. Sua base fiel de fãs, financiando as gravações antes mesmo dos discos serem lançados, possibilitou que se afastassem da opressão das gravadoras, com sua ânsia por hits grudentos e sucessos de vendagem. O elevado saldo artístico da banda no século XXI nos deixa uma pergunta no ar: em que medida as exigências das gravadoras EMI e Castle Records impediram que a fase “pós-Fish” mostrasse a que veio?
Depois de ‘Marbles’, percebe-se que o Marillion manteve o nível. Somewhere Else (2007) foi criticado pelos fãs xiitas, menos por sua qualidade, e sim porque ‘Marbles’ deixou todos mal acostumados. Os anos demonstraram que esse disco tem o sabor dos bons vinhos – sente-se seu valor pelo aroma de boca, pelo retrogosto que sucede o gole. E quando anunciaram que o disco seguinte seria duplo, novamente as espectativas foram gigantes, mas dessa vez as reações iniciais ao lançamento não foram tão passionais quanto em ‘Somewhere Else’:  Happiness is the Road (2008) pode ser tudo, menos um disco fraco. Por ser duplo, é compreensível que momentos menores pipoquem aqui e ali, mas o que dizer de um album com canções como ‘This Train is My Life’, ‘Trap the Spark’ e a faixa-título?
Less is More (2009) foi um trabalho de regravações de antigas e novas canções. Seu mérito é a coragem de arriscar, de sair da zona de conforto, experimentando timbres e arranjos bem diferentes do que a banda costuma se valer. Apesar da ousadia, parece ter havido um certo consenso sobre o trabalho ser mais “less” que “more” – ainda que no DVD Live from Cadogan Hall (2010) o elemento visual mostre como a proposta tem algo de interessante.
Chegando em 2012, temos então o lançamento de Sounds That Can Be Made. O disco vazou na internet, e eis que escrevo agora sobre ele enquanto o ouço pelas primeiras vezes. O entusiasmo com que o sinto é o mesmo de tantas pessoas que, pelo twitter e facebook, tem comentado empolgadas sobre o disco. Difícil falar de algo no calor do momento, mas ao que me parece, é o melhor disco da banda desde Marbles. Mas preciso ouvir melhor para falar mais a fundo.
Enfim, fica aqui a intenção de apresentar (ainda que sucintamente) alguns bons motivos para se abandonar a viuvez do Marillion com Fish – e, parafraseando um grande disco da “era Hogarth”, não se ter medo da luz do sol.

Liz X Lisa: as musas opostas do ethereal

Música ambiente, new age, eletrônica e doses de indie rock: estes talvez sejam os ingredientes do ethereal, um estilo musical tão pouco difundido quanto instigante.
Também conhecido como dream pop ou darkwave, os artistas desse gênero fazem com canções o equivalente ao que impressionistas como Van Gogh ou Monet faziam na pintura. Suas marcas registradas são sonoridades esparsas, cheias de efeitos como reverb e delay, que prolongam as notas e dão uma idéia de largos espaços vazios, solitude, distanciamento do mundo material e cotidiano. Há também quem vincule o ethereal à música gótica (ou gothic rock).
Os dois maiores nomes do gênero são os Cocteau Twins e o Dead Can Dance. Apesar de se abarcarem sob as asas de um mesmo estilo, são duas bandas que me parecem muito diferentes. A começar por suas principais vocalistas, extremamente opostas entre si.
Liz Fraser
Liz Fraser, dos Cocteau Twins, tem algo de frágil, parece que vai se despedaçar caso alguém se aproxime dela com muita intensidade. Ao vivo, tal impressão é ainda maior, e há quem diga que sua aversão à apresentações e shows foi o que ocasionou o fim do grupo.
Por sua vez, Lisa Gerrard, do Dead Can Dance, transmite a idéia de uma mulher forte, imponente, indubitavelmente presente. Seu olhar é firme, e seu porte físico e figurino transmitem uma indelével personalidade. 
Lisa Gerrard
A imagem transmitida por essas musas ethereais diz muito sobre suas respectivas bandas. O Cocteau é música espacial, suave e quase que flutuante na maior parte do tempo. Já o Dead Can Dance tem um som predominantemente concreto, com percussões marcantes, quase tribais em alguns momentos (obviamente, o repertório geral de ambas permitem leituras mais profundas, e apresentam outras nuances, mas essas que apontei me parecem as principais).
“Carousel”, de Robin Guthrie
As imagens e sensações evocadas por essas sonoridades costumam agradar a quem tem relações sinestésicas com a música, ou seja, relações sensoriais, para além do filtro racional. Uma vez, um amigo meu comentou que, ao ouvir Cocteau, visualizava coisas que pareciam extraídas de um compêndio de medicina ou biologia, como células, moléculas, mitocôndrias, etc (alguns discos solo do guitarrista do CT, Robin Guthrie, tem capas com esse exato tipo de imagem). Totalmente diferente de mim, que costumo imaginar arquiteturas exóticas, cidades e luzes. Cada canção é única, mas a gama de sensações é tão vasta quanto forem os seus ouvintes.
Dead Can Dance
Ao rastrearmos as influências do som do Dead Can Dance, podemos perceber uma espécie de mistura étnica e multicultural, com ares de world music. É o equivalente musical ao conceito de “mestiçagem”, utilizado para as misturas culturais feitas por países latino-americanos – só que no caso deles funciona em nível global, apesar de uma interpretação meio que diáfana e psicodélica, ao modo ethereal.
O Cocteau Twins já evoca o oposto: parece uma banda quase que “aculturada”, uma banda de lugar nenhum. Isso graças a suas melodias de acento pop, além das timbragens etéreas o suficiente para situar seu trabalho longe de qualquer traço cultural reconhecível.
Cocteau Twins
Ainda sobre o CT, o fato de Fraser cantar letras ininteligíveis contribui muito para que a banda tenha sua aura inclassificável. Sim, é isso mesmo: as letras do Cocteau se resumem à sua sonoridade, e quase sempre são desprovidas de significado, como uma “torre de babel” às avessas. Por nada dizer, deixam ao ouvinte a tarefa, muitas vezes inconsciente, de imaginar possiveis sentidos; se quiser.
Atualmente, as musas retornaram, meio diferentes: muitos fãs não reconheceram Gerrard, que, apesar de trajar o figurino de sempre, fez uma cirurgia plástica nos lábios. Fraser, por sua vez, deixou os cabelos grisalhos se alastrarem. 
Trivialidades a parte, o aspecto musical continua ótimo, uma vez que Lisa voltou com o Dead Can Dance, lançando um fantástico album, Anastasis, e saindo numa turnê mundial com o grupo. Liz voltou aos palcos, e críticos elogiaram sua performance, comentando como sua voz soa intacta, e suas releituras dos antigos clássicos dos Cocteau Twins pareceram brilhantes. 
Fraser ao vivo no Meltdown Festival (06/08/2012)
Anastasis (2012), novo disco do Dead Can Dance

Texto – Esquinas Progressivas

Na coluna que mantenho no site Progshine, publiquei essa semana um ensaio sobre o rock progressivo e o Clube da Esquina. É a primeira parte de duas (a segunda estará no ar no próximo domingo).
No texto, eu identifico alguns momentos da carreira dos principais nomes do Clube (Milton Nascimento, Beto Guedes, Flávio Venturini, etc.) onde eles se utilizaram de elementos do rock, mais especificamente na sua vertente progressiva
Confiram lá (e comentem, lá ou aqui!)

Resenha – Clockwork Angels (Rush – 2012)

Tarefa intrincada a de escrever algo no calor dos acontecimentos. Por um lado, não se tem o distanciamento necessário para analisar friamente seu alvo. Porém, a paixão que motiva a escrita fornece rico combustível em si mesma – lenha e calor dentro da mesma locomotiva, um trem fascinado com os próprios vapores.
Ao longo de 2011 e início de 2012, fãs e admiradores da banda canadense Rush se encontravam acometidos de uma imensa espectativa – desde que foi divulgado que o trio estava prestes a lançar um disco de inéditas, e dessa vez conceitual (todas as canções girando em torno de um mesmo tema). O lançamento gradual de algumas músicas avulsas apimentou a coisa, até que Clockwork Angels finalmente saiu do status de lenda para enfim se tornar uma realidade conhecida (esta, pelo que acompanhei dos comentários da maioria dos fãs da banda, muito bem vinda).
E, se por um lado as opiniões são quase unânimes em apontar o disco como um dos melhores deles em muito tempo, me pego pensando que pelo menos um outro aspecto importante para a apreciação desse trabalho deve ser discutido. Diz respeito ao fato de ser uma banda com um currículo de mais de quatro décadas, e isso deve ser considerado em relação ao que esperar da produção desses três brilhantes senhores.
Particularmente, vejo que Clockwork Angels é especial justamente por não por representar um trabalho “inovador” – ou seja, por não mostrar um Rush que quer novamente rodar os dados para encontrar novas combinações, nem tirar novos coelhos da cartola. É uma banda que, reconhecendo-se madura, busca agora sua própria essência. Ao olhar para o próprio umbigo (espaço do corpo onde muitos só enxergam auto-indulgência e pretensão), são capazes de identificar as pérolas e as vísceras do que melhor fizeram em tanto tempo (fato evidenciado na estética e nos temas da turnê mais recente da banda, Time Machine).
Assim, chegaram a um trabalho que soa mais Rush do que nunca. É uma banda que vasculhou o próprio baú, correndo o risco de montar um frankstein de si mesma, mas que felizmente realizou o feito de se mostrar crítica e relevante o suficiente para oferecer seu melhor. A própria iniciativa de um disco conceitual, ambientado em um universo de ficção científica (ou, nesse caso específico, do steampunk), nos remete imediatamente a 2112, primeiro clássico dos caras.
Mas nem tudo é nostalgia ou é referencial. Em CA, a novidade que mais chama a atenção, a princípio, parece ser a inclusão de arranjos de cordas. É um fato aparentemente inédito na carreira da banda (ok, Losing It, de 1982, contava com uma participação de violino, mas nada igual ao resultado de agora), e que, diferentemente de tantos projetos que unem rock pesado e arranjos orquestrais (moda que há cerca de uma década rendeu trabalhos de “medalhões” como Metallica ou Scorpions), não caiu no pastiche. Atuando de forma discreta, o naipe de cordas não prejudica o destaque que oportunamente recai sobre Geddy, Alex e Neil.
Discutidos os grandes designs gerais, é hora de nos voltarmos para as “pequenas vitórias” que são cada uma das faixas de Clockwork Angels. O trabalho começa com as duas canções que haviam sido divulgadas pela banda há mais de um ano: Caravan e BU2B mostram que essa jornada do Rush pela sua cronologia segue em linha inversa, partindo do presente para voltar ao passado. As primeiras faixas divulgadas soam bem afinadas com o material recente, como Snakes & Arrows e até mesmo o EP Feedback. Já a faixa-título carrega algo quase que transcendental, e parece ser a que mais representa (pra mim, pelo menos) a dificuldade em escrever sobre um trabalho ainda tão “fresco”. Nessa faixa, acho que a banda aponta para algum lugar novo e surpreendente.
Dali em diante, é possível encontrar ecos de duas fases específicas da história do Rush: de um lado, os discos dos anos 90, e de outro lado, os discos situados entre Hemispheres (1978) e Moving Pictures (1981). The Anarchist tem diversos momentos que evocam a dinâmica de clássicos como Red Barchetta e traços da sonoridade do início dos 80. Já Carnies é bem sessentista, com a introdução talvez mais pesada do disco, e que contrasta com pontes e trechos bem diversos entre si. Na sequência, Halo Effect apresenta algo da ambientação de Test for Echo (1996), com seus violões a la Resist. E Seven Cities of Gold inicialmente parece retornar aos primeiros discos, graças a seu riff setentista e sua crueza sonora; mas as sofisticadas mudanças de andamento trazem trechos que novamente retomam muito do que a banda fez nos anos 90.
BU2B2é uma vinheta que serve mais como uma espécie de “liga” para o contexto do disco (e, para o ouvinte desavisado, vale como lembrete do caráter conceitual da peça como um todo). The Wreckers é uma espécie de balada folk (temperada, porém, com a sonoridade da banda), cuja dinâmica sem excessos resulta em bons resultados. Headlong Flight é direta na melodia e nos arranjos (apesar de apresentar variações dinâmicas do mais puro virtuosismo e competência). Wish Them Well parece ter saído diretamente das sessões de Counterparts (1993), e não faria feio caso figurasse no repertório do Rush dos anos 90. Por fim, The Garden encerra grandiosamente o disco – repetindo o que afirmei sobre a faixa-título, ouço nessa faixa algo que parece apontar mais para o futuro, ou pelo menos para além de referências já manjadas dentro do legado do Rush.
Para não me alongar mais, me confesso positivamente surpreso com Clockwork Angels: um disco coeso, em que se torna quase impossível detectar deslizes e momentos menos expressivos. Funciona tanto como peça única quanto em suas faixas individuais. E o que dizer da beleza das letras? Temos aí um Neil Peart tão inspirado liricamente quanto em suas percussões explosivas, e tais versos mereceriam uma resenha a parte. A parceria entre o Rush e o produtor Nick Raskulinecz (que já dura há cerca de uma década) finalmente rendeu frutos de altíssimo nível.
Em vez de “dar trabalho pros anjos” (referência a canção Workin’ Them Angels) e deitar e rolar na comodidade, o Rush preferiu mesmo foi trabalhar diretamente com seus anjos, e o resultado acabou sendo primoroso. Se não sair nada melhor em 2012 (o que acho difícil), esse escriba opina que Clockwork Angels é definitivamente o disco do ano. 

Garbage of Industry: reflexões sobre os videoclipes

12jun2012

A cantora Shirley Manson, do Garbage, declarou recentemente que a indústria da música se tornou um verdadeiro “dinossauro”, incapaz de se adaptar à realidade dos downloads e da internet. Tal fato, na visão dela (e na minha também) é positivo, uma vez que quem estava nesse negócio mais motivado por dinheiro que por uma espécie de “amor a música”, teve que cair fora.

Mas o estopim para que eu escrevesse o presente texto não veio dessa específica declaração, e sim de um comentário feito por um internauta em um site aí. De acordo com ele, os “mini-films independentes” que o Garbage fez das músicas novas do disco (imagino que ele está se referindo a isso) não se igualam aos videoclipes antigos da banda. Por isso, sua dedução é que eles hoje em dia seriam apenas “uma sombra do que já foram”.

Discurso perigoso, a meu ver. Acho que depende do ponto de vista do qual esse sujeito está olhando. Se enxergarmos da ótica da pompa e circunstância da indústria dos anos 80 e 90; sim, o Garbage (e mais um imenso contingente de bandas e artistas) são hoje em dia meras sombras do que foram. Mas numa era onde os videos caseiros e espontâneos tem mais acessos no you tube que os clipes megaincrementados de outrora, então a coisa muda de figura.

Vide os clipes atuais dos Foo Fighters, como White Limo (todo filmado em fita VHS) pra comprovar como a questão deve ser relativizada. Estou falando de um videoclipe do disco mais aclamado dos FF, e falando da que talvez seja a banda de rock mais aclamada da atualidade. Ou seja: quem aí está reclamando de que falta glacê no bolo, precisa se perguntar se seu paladar está de acordo com o que a maioria anda saboreando.

Sintomaticamente, uma das mais interessantes séries musicais da atualidade trata exatamente desse assunto. Em Video Killed the Radio Star (transmitida, no Brasil, pelo Multishow e pelo VH1), artistas de sucesso das décadas de 70, 80 e 90 comentam sobre o processo de produção e recepção de seus videoclipes mais famosos. Para nós, cidadãos dos anos 2010, esse aspecto revisionista é uma imensa prova de que o videoclipe megaproduzido não é mais um fenômeno revolucionário.

Sou fã de carteirinha do programa, e assisto até aqueles de cujas bandas nunca simpatizei muito. Logo nas primeiras edições que vi, tive logo de cara uma certeza: não tenho mais paciência pra me sentar num sofá, e dedicar meu tempo à assistir videoclipes. As únicas pessoas que conheço com tal disposição são gente que trabalha na área de produção de video. E, por isso, a tarefa de assistir clipes serve pra eles não só como inspiração, mas também como pesquisa. São raras exceções, porque no geral, assistir videoclipes parece ser mesmo é um convite ao tédio – por melhor que seja a música. Até mesmo os DVDs de videoclipes das bandas que tanto gosto estão aqui guardados, amargando mofo e desuso.

Estou falando sobretudo do que eu acho, mas ao falar de mim, acredito que estou falando de outros tantos fãs e consumidores, que também não tem mais saco pra videoclipes grandiosos. Os que parecem (propositalmente) mal feitos, talvez até sejam suportáveis pelo elemento da auto-ironia. Seu sucesso talvez seja justificado por causa das formas com as quais o público contemporâneo tem se identificado com seus artistas favoritos. Na nossa época de shows filmados em celular e fotos amadoras, não dá mais pra acreditar que nossos estimados ídolos só existem de verdade ali dentro das imagens luxuosas das películas e das requintadas fotos produzidas em estúdio.

Voltemos a declaração de Manson, que causou todo esse texto. Não obstante, é bom lembrar-se que a palavra Garbage quer dizer, em português, lixo, refugo, sobra. Assim, em vez de pensar que a atual encarnação independente da banda é uma sombra daquela que estava filiada as gravadoras, seria bom pensar se ela não estaria de fato mais próxima do que eles realmente representam: do espírito punk, rebelde, visceral, e sem compromissos com um verniz imposto por executivos que tem como único lema “vender”. 

Os clipes sempre foram um complemento mercadológico ao que realmente importa – música. E atualmente, estão voluntariamente assumindo novas formas, para o bem ou para o mal.