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Cyro dos Anjos profetiza a Bossa Nova

Li apenas dois livros de Cyro dos Anjos, mas isso bastou para que o considerasse meu escritor brasileiro preferido (até porque li mais da metade da sua obra ficcional, restando apenas o romance derradeiro Montanha).

Sua narrativa é introspectiva, com tons de crônica, polvilhada com dados comentados sobre vários episódios e figuras da cultura ocidental, tudo isso costurado por uma escrita refinada e também clara.

Amanuense Belmiro é sua obra prima, mas Abdias tem inúmeros méritos. E um dos que mais me impressionaram (apesar de ser bem sutil, a princípio) foi o fato de Cyro, através de seu alter-ego Abdias, fazer uma verdadeira profecia sobre o surgimento da bossa nova, movimento musical que acabou por batizar e se compor como um gênero à parte.

Vinicius-Jobin-Joao
Vinicius, Tom e João Gilberto, década de 50

O romance data de 1945, enquanto que o tiro de largada para a bossa nova foi um compacto com duas músicas de João Gilberto, lançado quase quinze anos depois, em agosto de 1958.

O que Cyro faz, dentro do romance, é uma breve análise do samba, onde ele elenca pontos que o desagradam no estilo, enquanto vislumbra possibilidades que cabem como uma luva no intinerário bossanovista.

Na cena criada por Cyro, Abdias aparece com um ponto de vista bem conservador sobre o samba.

Talvez ele se referisse, sem muito conhecimento do tema, aos sambas-canção carnavalescos, com uma repetição incessante de trechos específicos, harmonias previsíveis e letras com apelo popular.

Talvez não conhecesse os sambas de Noel Rosa e Ary Barroso, Adoniran Barbosa, e outros que já estavam em atividade na época do romance (Noel, inclusive, já havia falecido há alguns anos).

Talvez Cyro dos Anjos estivesse apenas compondo seu personagem, um amante da música clássica e da cultura erudita (interesses também de Cyro, pelo que se sabe).
 
De início, iria citar apenas o trecho específico sobre o samba. Mas decidi reproduzir aqui a página quase integral, que de certa forma rodeia o tema, e que demonstra bem a escrita fluida, saborosa e elegante do autor:

    “Estávamos numa segunda-feira de carnaval, e uma camioneta com alto-falante rodava pela rua, derramando no ar sambas fanhosos, entre anúncios de pastas dentifrícias.
     
    Chamei a atenção do Dr. Azevedo para a invasão crescente do samba e condenei o apoio que lhe davam alguns intelectuais. Prestigiando aquela manifestação primária da criação musical e conferindo-lhe foros de cidade, influíam para que o povo cada vez mais se distanciasse da boa música.
     
    – O rádio é talvez o maior responsável por isso, concordou.
     
    E contou-me, a propósito, que, para se ver livre de uma família de fanáticos radio-ouvintes, que faziam o aparelho funcionar o dia inteiro, teve de comprar a casa vizinha.
     
    – Como vê, eu, velho democrata, tive de procurar solução no espírito latifundiário e imperialista da Glória. Mas não havia remédio. Quase me punham doido. E quando ouviam irradiações de partidas de futebol? Estas são de enlouquecer!…
     
    O assunto excitara-o. Continuou, animado:
     
    – Agora, não me apanham mais. Do contrato de locação faço sempre constar uma cláusula segundo a qual o locatário não pode utilizar-se do rádio senão umas duas horas por dia. E são sempre as horas em que não estou em casa.
     
    Voltando à questão do samba, disse, depois, que talvez estivéssemos exagerando o mal que decorria de sua incrementação, através da atividade radiofônica. Quem sabe essa música elementar não seria preparatória de formas musicais superiores, no futuro? À semelhança do que já faziam alguns compositores brasileiros da atualidade, outros talvez viessem, mais tarde, extrair da ganga pobre do samba temas para concepções mais ricas…

De fato, João, Tom e Vinicius o fariam. Mas a bola já tinha sido cantada antes, obscuramente, no rodapé desse belo romance do mineiro de Montes Claros.

Historinha real

Outro dia, estava eu a andar de bicicleta, quando leio a placa numa casinha simples: “vende-se chup-chup. 50 centavos com suco, 80 centavos com leite”.

Bateu uma nostalgia danada da infância e pré-adolescência, quando eu e meus amigos comprávamos chup-chup nas casas da vizinhança, as vezes chamando até mesmo de madrugada, fizesse frio ou calor. Tinha de morango, chocolate, coco, meu preferido era um rosa de creme holandês, cujos ingredientes ainda hoje me são desconhecidos, mas o sabor permanece memorável.

Parei como um menino em frente a casa. Enquanto contava as moedas animado, me peguei pensando “mas, peraí, com que água eles fazem o chup-chup? É feito com suco de pózinho, esses vagabundinhos de marca genérica? Polpa de fruta é que não é! E chup-chup de leite? Mas eu não tenho tomado leite! E se eu passar mal?”

“Ah, Rafael, você está ficando velho”, constatei enquanto voltava a pedalar.

A Arte como Caminho Espiritual – um breve ensaio

Sou um grande admirador do filósofo britânico Paul Brunton. Certa vez, li um aforisma dele que nunca mais esqueci, e transcrevo aqui de memória (acrescentando apontamentos meus).
 
Dizia ele que a religião é dispensável para o verdadeiro artista. Não que esse artista não possa ter uma; mas é que a arte pode servir como um caminho espiritual tão válido quanto a religião.
 
Se for um artista empenhado em executar uma obra cada vez mais próxima daquilo que sua alma sopra pra si mesmo (e não um embusteiro em busca de dinheiro fácil), então passos serão dados em direção a uma espécie de redenção.
 
Essa ideia soa meio messiânica, mas dois tipos de pessoas irão compreendê-la: os artistas – ateus ou não -, que algum dia produziram algo que lhes pareceu profundamente sincero; e as pessoas que, em dado momento, sentiram uma identificação de alma com uma obra artística.
 
E esse é o ponto que acho interessante em relação a caminhada espiritual da arte: as obras funcionam como faróis, como vislumbres de algo maior, algo que pode-se chamar de Deus, de paraíso, ou algo inominável. A verdadeira obra de arte pode inspirar todo tipo de pessoa (quem faz e quem aprecia) a se abrir para uma transformação interna.

“Venha, meu amor”: a história da canção celta “Siúil a Rún”

Uma canção chamada Shule Aroon e outra chamada Johnny has Gone for a Soldier. Uma simples audição revela diversas coincidências entre ambas. Na verdade, apesar dos títulos e das melodias levemente diferentes, todas elas derivam da mesma canção, chamada Siúil a Rún, um antigo tema tradicional da Irlanda, de autoria desconhecida.
 
Nos últimos anos, Siúil a Rún estrapolou as fronteiras da Irlanda, e se popularizou ao figurar no repertório de megaespetáculos como o do grupo feminino Celtic Woman, ou o show de dança Riverdance. Mas alguns anos antes, de forma nem muito tímida, as diversas versões e adaptações da canção já haviam sido interpretadas por diversos nomes: desde o grupo Clannad (dos familiares da cantora Enya, conhecidos como os “embaixadores musicais da Irlanda”) até o cantor americano de folk music James Taylor, passando por artistas como Pete Seeger, Mary Black e Bonnie Dobson.
 
 
 
O título original, “Siúil a Rún”, no idioma gaélico, quer dizer “vá, meu amor”. Apesar do refrão cantado em gaélico, as estrofes estão em inglês. A mistura é justificada pelo fato de que ambos são os idiomas oficiais da República da Irlanda (nação que ocupa boa parte da Ilha da Irlanda, dividida entre a República e a Irlanda do Norte). O idioma inglês entrou na ilha quando houve a invasão de mercenários cambro-normandos, enquanto que o “gaélico irlandês” (Gaeilge) descende da história dos povos celtas que formaram o país. O fato de se misturar esses idiomas distintos em um mesmo contexto talvez veicule a canção à uma forma poética conhecida como “macarrônica” (macaronic, algo parecido com o que nós brasileiros nos referimos quando alguém fracassa em falar um idioma estrangeiro, incorporando sem querer elementos da própria língua).
 
A letra é cantada do ponto de vista de uma mulher, que lamenta a ida do seu amado para o exército. Essa camada superficial de significado emerge facilmente em uma audição rápida. Contudo, o exercício de se rastrear as origens da canção pode revelar pistas meio que obscuras. Há quem diga que Siúil a Rún se refira à Revolução Gloriosa, que afetou todo o Reino Unido no século XVII. Mas outras possibilidades apontam para o fato de que a canção teria sido composta no século XIX, emulando um estilo mais antigo. Nada é certo em relação a isso. De todo modo, é possível que ela tenha sobrevivido ao teste do tempo da mesma forma que diversas canções antigas da Irlanda: várias delas eram traduzidas integral ou parcialmente para o inglês, algumas vezes mantendo apenas o refrão no idioma original gaélico-irlandês. Existem até mesmo casos em que as traduções acabaram gerando versos praticamente sem sentido!
 
O mais interessante sobre Siúil a Rún e suas versões é que as diferenças entre elas pode dizer muito sobre seu contexto original. Na versão americana da música (que se tornou muito popular nos Estados Unidos na época da Guerra Revolucionária Americana do séc. XIX), o personagem do jovem segue para a guerra; mas na versão irlandesa, o mesmo jovem segue por um difícil e voluntário exílio. Há quem diga que essas variações seriam fruto da própria história da Irlanda, e se referem à invasão dos ingleses: os irlandeses teriam sido pressionados pelos britânicos a se alistar no exército, caso contrário seriam exilados para sempre.
 
A versão americana se vincula à original ao manter trechos da letra irlandesa, mas além de ter uma melodia diferente, há o acréscimo de uma frase que modifica todo o sentido, a ponto de ter se tornado seu novo título. “Johnny Has Gone for a Soldier” marca a decisão do personagem de enfim seguir para a carreira militar (Johnny foi se tornar um soldado, ou algo do tipo).
 
 
Uma versão intermediária entre Johnny e a suposta original Siúil a Rúnchama-se Shule Aroon – apenas uma grafia diferente do termo gaélico. A melodia é semelhante à Johnny, mas no lugar da frase do título, está “iss go jay too mavoorneen slahn”, extraída do original gaélico (também escrita como “Is go dté tú mo mhuirnín slán”).
 
 
A canção é mencionada em alguns clássicos da literatura. Em O Mestre de Ballantrae, de Robert Louis Stevenson (o mesmo autor de A Ilha do Tesouro e O Médico e o Monstro), o protagonista a assobia para impressionar a mulher de seu irmão mais novo, e em seguida faz comentários depreciativos sobre seu significado, debochando dos exilados jacobitas na França que choravam ao ouvir sua letra.
 
Uma aparição ainda mais notável de Siúil a Rún está no célebre romance Ulisses, de James Joyce. No capítulo intitulado Ítaca, Stephen Dedalus está na cozinha de Leopold Bloom, e cantarola a canção para seu amigo, que responde cantando uma canção em hebraico para Dedalus. A letra de Siúil se vincula a um tema que aparece em todo o livro, a respeito da perda da linguagem, da traição, e de mulheres que vendem a si mesmas.
 
Segue a letra original (pelo menos a mais antiga que se tem notícia) e suas variações:
 
Siúil, siúil, siúil a rún
Siúil go socair agus siúil go ciúin
Siúil go doras agus éalaigh liom
Is go dté tú mo mhúirnín slán
 
I wish I was on yonder hill
‘Tis there I’d sit and cry my fill
And every tear would turn a mill
Is go dté tú mo mhuirnín slán
 
I’ll sell my rock, I’ll sell my reel
I’ll sell my only spinning wheel
To buy my love a sword of steel
Is go dté tú mo mhúirnín slán
 
I’ll dye my petticoats, I’ll dye them red
And round the world I’ll beg my bread
Until my parents shall wish me dead
Is go dté tú mo mhúirnín slán
 
I wish, I wish, I wish in vain
I wish I had my heart again
And vainly think I’d not complain
Is go dté tú mo mhúirnín slán
 
But now my love has gone to France
to try his fortune to advance
If he e’er comes back ‘tis but a chance
Is go dté tú mo mhúirnín slán

Uma tradução (em inglês) para o refrão em gaélico seria:

 
Go, go, go my love
Go quietly and peacefully
Go to the door and flee with me
And may you go safely my dear.
 

Uma versão alternativa (ainda irlandesa) da letra inclui esses versos:

 
His hair is black, his eye is blue
His arm is stout, his word is true
I wish my darling I was with you
‘s go dtéigh tú, a mhúirnín, slán
 
I watched them sail on Brandon Hill
It’s there I sat and cried my fill
And every tear would turn a mill
‘s go dtéigh tú a mhúirnín, slán
 
I wish the King would return to reign
And bring my lover home again
I wish, I wish, I wish in vain
‘s go dtéigh tú a mhúirnín, slán
 
E, aqui, alguns versos adicionais da versão em inglês:
 
I sold my flax and I sold my wheel
to buy my love a sword of steel
so it in battle he might wield
Johnny’s gone for a soldier
 
Oh my baby oh my love
gone the rainbow gone the dove
your father was my only love
Johnny’s gone for a soldier

Deus, essa epiderme

Para os crentes, a oração é a construção de uma linha direta com Deus, enquanto que, para os ateus, é um tempo perdido e nada divertido. E no meio dessas perspectivas, existem outras, como os que oram por medo do inferno ou motivados por desejos (as famosas “orações pedintes”), mas não é nessas searas que quero me meter.
 
Esses dias, fiquei pensando no quanto de química existe na oração. Afinal, tudo que fazemos ativa e desativa substâncias corpo afora; desde uma olhada tímida para a lua até o ato de correr na maratona de são silvestre. Essas coisas objetivas que fazemos inevitavelmente despertam químicas, talvez desconhecidas por nós, que percorrem as tantas rotas do nosso pequeno grande organismo.



Acreditamos ter controle sobre essas químicas. Corremos e fazemos amor porque buscamos endorfina. Saltamos de uma ponte amarrados numa corda de rapel querendo adrenalina. Só que nem sempre temos o controle esperado. Você se mata de estudar para aquela provinha cabeluda, e, veja só, acaba ficando tão nervoso que erra tudo! Ou perde a noção do que fazer quando encontra um tigre no meio da rua de casa (digamos que ele tenha fugido do zôo, só para deixar o exemplo menos surreal).
 
De certa forma, orar envolve não um controle, mas talvez um direcionamento dessas químicas, por ser um exercício consciente de amor ao próximo e de louvor. Em um mundo tão objetivo e materialista, o ato de orar pode até ter algo de pitoresco, mas é algo que libera substâncias em nossos corpos como qualquer outra atividade do nosso cotidiano.
 
Nessa perspectiva, pode-se pensar que ter fé e incluir a prática espiritual nas nossas vidas pode ser tão pragmático quanto comer um pacote de biscoito. Tudo bem que é algo que você possa anotar na agenda e fazer, mas, convenhamos, é um bocado difícil abrir mão do cineminha ou da balada para passar alguns minutos ou horas orando pela humanidade. É um pragmatismo pouco usual, que só parece fazer sentido quando se tem fé. 
 
 

Mas, para não fugir do ponto nevrálgico das minhas reflexões, talvez hajam químicas que só a oração libera em nosso corpo… ou não?
 
Bem, não. Muitas pessoas que tomam LSD alegam ter sentido a presença de Deus. Na verdade, já houveram ashrans de monges e líderes espirituais que usavam o LSD para acelerar um processo de autoconhecimento e de prática religiosa. Como leigo, imagino que o ato de tomar ácido lisérgico possa liberar em nós uma enorme quantidade de químicas semelhantes às do momento de uma oração sincera. Só que tanta facilidade em ir de encontro até o Criador pode custar caro, uma vez que o próprio corpo e a mente do sujeito quase nunca estão preparadas para um vislumbre tão magnífico. A prática do ioga, por exemplo, tem como um dos objetivos preparar corpo e mente para o instante derradeiro da iluminação, quando o discípulo torna-se um bodhisattva. O equivalente ao caminho da oração para o catolicismo, que leva o indivíduo à santidade. Por “preparar”, me refiro a um fortalecimento do ego – corpo e mente da pessoa cada vez mais fortalecidas, até o instante em que o próximo passo seja abandonar-se para adentrar ao nirvana ou ao céu.
 

A ciência tem cada vez mais flertado com a espiritualidade, desde a física quântica até a descoberta da dinâmica do Bóson de Higgs. Não me atreverei a escrever sobre essas áreas que pouco conheço, mas acredito que, quando se abre para tais fenômenos, o cientista está cada vez mais próximo do artista ou do monge – só que o paradoxo é que ele não deixa de ser cientista. Só se amplia o escopo e a função.
 
 

Jung (sujeito extremamente empírico, mas que o senso comum cristalizou como um místico) dizia que sua autobiografia “Memórias, Sonhos, Reflexões” frustraria leitores que procurassem fatos, datas, e informações muito objetivas (na psicanálise junguiana, se diria que é um perfil típico de um leitor “extrovertido”). Porque a trajetória dele é para dentro, é interna, introspectiva. Jung buscava entender não só o simbolismo do elemento sagrado e espiritual, mas também sua organicidade (afinal, era psicólogo, e médico de formação).
 
Ao pensar nas químicas corporais que percorrem o corpo (esse pequeno mundo que é parte de nós), percebe-se uma responsabilidade parecida com a do homem no planeta: podemos tanto fazer guerras, quanto fazer cidades, e, se possível, construir templos e igrejas. Dentre outras vocações, nosso corpo pode ser um templo. As forças que a oração libera são tão orgânicas quanto sobrenaturais. É como se a escolha da palavra (“no início era o verbo”…) e da atitude fossem chaves de portões, que, quando abertos, liberam jatos químicos sobre as veias, criando mosaicos de paz e serenidade sobre nossa percepção.

20out2013

Download da HQ Ana Crônica

Em 2009, editei a HQ, Ana Crônica, que lancei pela TGB Gráfica e Editora. Foi meu primeiro trabalho mais elaborado. A primeira (e única) tiragem se esgotou, e agora, comemorando 4 anos de seu lançamento, enfim a disponibilizo na internet.

Ana Crônica é uma personagem deslocada num mundo que considera maluco demais para sua cabeça. Mora numa quitinete em São João Del Rei, está um pouco acima do peso, e adora filmes e músicas antigas. É amiga de muita gente da universidade, detesta seu emprego, e tenta levar a vida com um pouco de autenticidade e alegria.
Dividi as duas histórias que compõem a HQ em arquivos separados. Abaixo o link das duas. E, em seguida, o download do programa Comic Display, que possibilita a leitura das histórias no formato cbr.
Pros que não leram, espero que gostem. Quem já tem o gibi impresso, fica uma outra forma de reler e de guardar.
Rafael Senra

Nietzsche, profeta do Twitter?


Provavelmente, alguém já criou uma conta de twitter que reproduza aforismas de Nietzsche (não me darei ao luxo de procurar, prefiro arriscar essa hipótese quase que óbvia de que a conta existe). Seus trechos enxutos e polêmicos parecem ter sido feitas sob medida para a rede social de 140 caracteres.

Não que ele houvesse profetizado o limite de palavras, ou perseguisse qualquer estrutura reduzida, e muito menos que tenha sido um amante da síntese. Em seu livro Nietzsche como Obra de Arte, Rosa Dias discute como o estilo fragmentado do filósofo é menos uma vaidade de estilo, e mais uma afirmação de seus próprios conceitos já influenciando a própria forma do texto. Para ele, os tradicionais textos sistemáticos, com sua estrutura maciça e amarrada, engessam a reflexão livre, aprisionam os sentidos, e satisfazem apenas aos que cultuam o conhecimento acumulado.
Os amantes das palavras, que as saboreiam lentamente entre uma reflexão e outra, prefeririam a naturalidade e a força dos aforismas curtos. O caráter afirmativo e leve por trás de conceitos nietzschianos como “vontade de potência” já ficam claros na própria fragmentação do aforisma – na falta de continuidade, nos espaços em branco, tão caros à poesia e a música.
Em nosso século XXI, o pensamento de Nietzsche continuamente se revela atual, pungente, e sua mensagem ainda reverbera, dialoga profundamente com nosso contexto. Se levamos em consideração a lógica dos aforismas, isso ocorre não só no conteúdo, mas na forma (infelizmente, essa síntese ensaística favorece uma simplificação e uma deturpação do que é dito – e, nisso, o alemão é craque, visto que o nazismo foi um dos movimentos que mais se apropriou indevidamente de suas idéias).
Rosa Dias alerta, logo no início de seu texto, sobre como a escritura aforística “seduz os espíritos superficiais” (pág. 23), apesar do aspecto ainda mais complexo e aprofundado que tal escrita evoca. Um texto aforístico como o de Nietzsche costuma ser muito mais provocador que boa parte de ensaios sistemáticos e objetivos. Seus silêncios e vazios deixam lacunas que só podem ser preenchidas pelo leitor, favorecendo assim um rico aspecto interativo (outra característica bem afinada com nossa era virtual).
Os dois tipos de leitores que Nietzsche queria evitar ao escrever por aforismas são arquétipos bem reconhecíveis em nossas redes sociais contemporâneas. Rosa diz que, para o filósofo, “os piores leitores são, em primeiro lugar, aqueles ‘que agem como soldados saqueadores: retiram alguma coisa de que podem necessitar, sujam e desarranjam o resto e difamam todo o conjunto’, em segundo lugar, aqueles espíritos vulgares que tem um hábito repugnante de, na palavra mais profunda e mais rica, não ver senão a banalidade de sua própria opinião” (pág. 23). Qualquer semelhança com nossos feiciboquis não é só mera coincidência, mas é prova de que nosso senso comum sobre a civilidade de nossa sociedade é bem discutível.
Mas, diferente do bigodudo, me recuso a ser tão pessimista. Devemos nos lembrar que em meio aos BBBs e formadores de “xoxas doxas” que angariam tantos seguidores no twitter, encontramos diversas vozes ricas e estimulantes, que utilizam a limitação de espaço e a fragmentação da rede de modo positivo. Diversos poetas e comunicadores mais espertos já sacaram isso. Se eles não apresentam (ainda) uma lista de seguidores que ultrapasse os quatro dígitos, a culpa é menos da força de seus escritos, e mais porque o panorama sombrio prenunciado por Nietzsche, como já disse antes, soa tristemente atual. O próprio filósofo, caso nascesse hoje em dia e quisesse fazer uma conta na rede, provavelmente não faria muito sucesso. Seria só a versão virtual daqueles mendigos com placas do apocalipse que fazem o folclore das nossas praças interioranas. Entretanto, ainda que quixotescas pelas contingências na nossa época, pelo menos essas figuras do bem estão aí, compartilhando seu pensamento com aqueles que se interessam, ambos (destinatário e remetente) dispondo de meios mais ágeis de diálogo, graças a internet.
– foto extraída do blog http://namedidadosensivel.blogspot.com.br

O Lobo das Vertentes – um ensaio sobre Toninho Ávila


Faz tempo que quero escrever um texto sobre a vida e obra do amigo Toninho Ávila, também conhecido como Lobo Bruxo. Na verdade, nesse tempo que já completa mais de meia década de amizade (all things must pass…), creio que esse texto já vinha sendo escrito, inconscientemente. Faltava só passar para o papel (ou para a tela do computador).
Quando me refiro a vida e obra do Lobo, não pretendo me aventurar em redigir biografias. Quero dizer que em torno da sua figura carismática e peculiar, parece difícil distinguir o que é vida e o que é obra. Porque não se nota essa “quebra” entre o que Toninho expressa artisticamente e o que ele atravessa no cotidiano. Seu viver diário é arte; e sua arte fala do viver: ele habita em ambos, o tempo todo.
Isso lhe confere uma espontaneidade e um entusiasmo invejáveis (todos se assustam ao constatar que o Lobo já habita as Vertentes Gerais por sessenta e tantos verões…). A meu ver, Toninho é desta categoria de artistas autênticos e viscerais, como Lennon ou Van Gogh – ambos, inclusive, já retratados pelo “animal” em algumas de suas pinturas.
A arte de Toninho em várias de suas expressões (performance do cotidiano, pintura, poesia, ecologia, vida) carrega algo de rústico e de natural. Por rústico, entendo a técnica que o artista emprega em tudo que faz. Para seus detratores, o caráter “rústico” seria visto como heresia, falta de capricho, ou irregularidade estética. Contudo, tal rusticidade ganha força na espontaneidade, na sua atitude integral de vida e obra imbricadas, como um tecido de múltiplas linhas e de intensa estampa. Rústico como o grito de Lennon em “I´m So Tired” ou “Mother”; rústico como as pinceladas de Van Gogh, rústico como o barroco da São João del-Rei, que é terra natal do Lobo.
 
É daí que brota (e essa palavra não está aqui gratuitamente) seu aspecto natural, fruto também da espontaneidade. Toninho se identifica com tudo que é tão natural como ele; daí seu encantamento pela natureza, pelas árvores, flores, cachoeiras, serras e pássaros. Sua mãe conta como, na infância, Toninho chorou ao ver uma árvore sendo cortada. Anos depois, seria ele o responsável pelo plantio de diversas delas por toda a São João. Sua militância ecológica data de antes das atuais discussões sobre o cataclisma ambiental – pauta ideológica talvez mais urgente em nossa época, dentre tantos bla-bla-blas vazios.
A forma de Toninho estar no mundo assemelha-se, por vezes, a uma intervenção poética, com algo de lúdico e poético a um só tempo. Seu jeito, sua fala, gestos e palavras estão fora do tempo, além do espaço, fora da ordem – ecoando toda a loucura e a magia de tempos imemoriais, e até de tempos futuros.
Seu tempo é tanto a contracultura sessentista quanto a contemporaneidade digital. Seu espaço é universal – ou alguém enxerga diferença entre as fotos de Toninho nas cachoeiras de São João-del rei e as imagens do Woodstock? Em uma de suas frases seminais, disse “Sou EASY RIDER, mas nunca saí de CASA, tá ENTENDENDO??”.
Seu projeto estético de vida e obra ganha força justamente nessa integralidade, nessa vivência intermitente, que é prova viva de integridade para sua arte. Toninho parece habitar dentro do arquétipo do demiúrgo moderno, seja ele o Knulp ou o Lobo da Estepe da literatura de Hermann Hesse; ou o “fool on the hill” dos Beatles; e até mesmo o eremita do antológico Led Zeppellin IV.
E não venha relativizar as coisas quando se aventurar a conversar com o Lobo. Não arrisque confundir “Jesus com Genésio”. Autêntico e provocador, Toninho sempre tem algo a dizer, e nunca deixa escapar de vista a ética, ainda que intitule seu caráter como “multipolar”. Tá na dúvida?
            – Ou EL ou NÃO-EL – já dizia o NOEL………   
*
Conheça mais sobre o trabalho do Lobo Bruxo em seu site oficial e seu perfil no facebook!


Cantando e Decantando “Paisagem da Janela”


Foto: Teresa Duarte – Flickr da autora

O que é um mito? Para que serve? Há quem diga que o mito engana, e que acreditar em um Zeus no Olimpo como os gregos, ou em um Deus-Sol como os índios das américas, é ser alienado da realidade, dos fatos concretos. O que é mais estranho: os mitos, ou os fatos concretos? Depois da relatividade de Einstein, dá pra falar em coisas concretas? E mais: quem disse que os mitos não são fatos?

Prefiro a definição de Joseph Campbell, que diz que “nos mitos, encontramos personagens que ressoam dentro de nós, e usamos os mitos para criar ordem a partir da nossa própria experiência1“. Obras de arte podem criar e recriar mitos, podem fazê-los ressoar em corpos, mentes, corações e espíritos.
Nessa ótica, os mitos da mineiridade tem muito a dizer para quem quer apreender tais significados. Mais que uma bela melodia assobiável, a canção “Paisagem da Janela” é um veículo de diversos mitos mineiros, e o fato de seu significado ser meio vago possibilita diversas e amplas leituras. Arriscarei a minha.
Da janela lateral do quarto de dormir
O quarto de dormir é (ou deveria ser) o espaço onde nos afastamos da correria do mundo. A merecida pausa para lamber as feridas. Um local de contemplação, de faxina mental, de sossego. Ali, as contas para pagar, os compromissos sem fim, a correria do trânsito, a barulheira e o caos urbano; são fenômenos que ficam para trás.
A vida é correr atrás de algo, ter metas, sonhar e tentar realizar. Mas também é contemplar, apreciar o esforço, parar pra respirar e observar. Sem o momento de reflexão, qual o sentido de tanta conquista?
Para muita gente, Minas Gerais representa isso: seu espaço bucólico, interiorano, rural, seria esse lugar de repouso, um refúgio no meio das cadeias de montanhas, de onde a gente pensa na vida em meio ao aroma do alecrim e do fogão de lenha, degustando um copo de leite fresco, pão de queijo e café passado na hora.
A vida aponta pra frente, como a seta da flecha. Mas o vento que refresca, vem da janela lateral.
Vejo uma igreja, um sinal de glória
Vejo um muro branco e um vôo pássaro
Vejo uma grade, um velho sinal
Igreja, muro, grade, velhos sinais. Obras forjadas na pedra, por mãos humanas, mas que arriscam “um vôo pássaro”. Voam pela nossa mente, nos trazendo sinais de glória. Assim é o patrimônio: casas antigas, praças, ruas, calçamentos, a cidade. Assim como o sangue que nos é legado de geração em geração, o patrimônio nos fala de onde viemos. E em suas fissuras e vielas, podem também evocar profecias e dizer para onde vamos.
O patrimônio é identidade. A história é a liga que nos consitui enquanto seres sociais, enquanto pessoa inserida em um meio. Como diz o filósofo Ortega Y Gasset, “eu sou eu e minhas circunstâncias”.
Mensageiro natural de coisas naturais
Os mitos da mineiridade falam muito dessas tais “coisas naturais”. Como na canção de Nelson Ângelo, o mineiro tem “um gosto de fruta, um cheiro de mato, em meu (seu) pensamento2“.
Só o mensageiro natural pode falar das coisas naturais. Os “falsos profetas”, dos quais o apocalipse já alerta, surgem a todo momento, e querem vestir as maiores atrocidades como sendo coisas naturais. “A violência é natural”, brada um. “A pobreza é natural”, vocifera outro. “Compre isso”, “você precisa daquilo”, “faça desse jeito”, dizem os slogans publicitários.
A voz do vento, o reflexo das águas, a direção das labaredas: nada disso quer te convencer de nada. É o que é, é natural. São os genuínos mensageiros.
Quando eu falava dessas cores mórbidas
Quando eu falava desses homens sórdidos
Quando eu falava desse temporal
Você não escutou
Será que a sociedade vem ouvindo esse chamado dos mensageiros naturais? O que foi feito depois das cores mórbidas das enchentes, dos tsunamis, catástrofes naturais, dos buracos na camada de ozônio, doenças do corpo e da mente? Quem são os homens sórdidos: os que fazem a tragédia, ou os que a ignoram o temporal? Não podemos dizer que não fomos avisados. É honesto admitir que nós não escutamos.
Você não quis acreditar
Mas isso é tão normal
Sim, é normal. O que é natural, pode não parecer normal para os olhos já empaturrados de informação processada, do excesso de dados culturais.
É preciso que seja dito o que, em tese, é tão óbvio: o natural é tão normal.
Cavaleiro marginal lavado em ribeirão
Cavaleiro negro que viveu mistérios
Cavaleiro e senhor de casa e árvores
Sem querer descanso nem dominical
Seria um mito arturiano ressurgido nas Minas? Um membro de távola redonda ou irmandade religiosa; um Lancelot-tupiniquim-cristão-novo; lavado pela Senhora do Lago de Furnas; banhado pelo Ribeirão do Eixo de Avalon; que viveu mistérios insondáveis nessa Camelot-Gerais; configurado em senhor de engenho, casa e árvores; um trabalhador honrado e incansável?
Cavaleiro marginal banhado em ribeirão
Conheci as torres e os cemitérios
Conheci os homens e os seus velórios
Ou seria um Merlin; um demiurgo mineiro; um Viramundo; um décimo-terceiro profeta sem nome; maltrapilho errante; que em suas andanças através dos séculos pôde observar torres e cemitérios; e a ascenção e queda dos homens?
Quando olhava da janela lateral
Do quarto de dormir
Ao olhar da janela lateral, todos podemos assumir esses mitos que existem dentro de nós, como diz Joseph Campbell. Podemos ser os magos e guerreiros da nossa própria vida. Todos os sinos, cemitérios e igrejas de todos os tempos e espaços do mundo vivem em nós, em nossas moléculas, no pó de que viemos.
Não pergunte a ninguém por quem os sinos dobram: a igreja que você observa da sua janela lateral pode lhe responder.
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Notas:
1 – CAMPBELL, Joseph. In: KELEMAN, Stanley. Mito e Corpo: uma conversa com Joseph Campbell. São Paulo: Summus, 2001.
2 – ÂNGELO, Nelson. JOYCE (intérpretes). Um gosto de fruta. In: Nelson Ângelo & Joyce. Disco. EMI Odeon: 1972.