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Sobre Afetos e Jardins

Foto: Paloma Parentoni

 1 – Homens e Mulheres (e não “ou”, “versus”, “com”, e eteceteras)

Existem tantas maneiras de se estar no mundo quantas forem as pessoas à habitá-lo. E nossa diferença não vem apenas da cor dos olhos ou das impressões digitais. Não vem de humanas miudezas. Acima das heranças, são nossas escolhas que mais dizem sobre nós. Todo aquele que anda escreve a sua história com pegadas. 
Mas, em se tratando de humanos (essa espécie que adora se fazer de soberana nessa terra), existem alguns pontos universais. A divisão de gênero, entre masculino e feminino, é crucial ao se pensar sobre formas de estar-no-mundo. Muito mais que distinções de corpos, as consequências simbólicas dos gêneros são imensas. Do contrário, ninguém se chocaria com frases como a de Lacan, que décadas atrás afirmou que “a mulher não existe”.
Não quero, aqui, discutir psicanálise ou quaisquer complexos dessa ordem (nem tenho cabedal para tanto), mas vale a pena se deter um pouco sobre essa frase. Muitos acreditam que é uma idéia misógina e preconceituosa em relação à mulher, quando, de fato, penso que ela se refere a mulher como sendo uma espécie de “falha” na matrix simbólica. Creio que, para Lacan, ela (a mulher) escapa do universo simbólico, não é apreendida pelo lastro cultural assim como o homem é. Falarei melhor disso adiante.
Isso se daria por uma dialética básica; mas antes de entrar nesse assunto, é necessário aprofundar o conceito de “falo”. Certamente o falo não se resume ao pênis do homem, mas sim a um símbolo de poder, que em narrativas mitológicas se confunde, por exemplo, com espadas, armas, torres de castelos, enfim, artefatos de poder. A bravura, a iniciativa, a postura de um guerreiro ante os deveres da vida, são todas características tidas como “fálicas”.
Foto: Carla Evanovitch

Agora sim, menciono essa tal dialética, que consiste de duas maneiras diferentes de se estar-no-mundo: de um lado, o homem, que assume seu “falo” como âncora para se fixar no oceano simbólico. Ou seja, ao ser ativo e ousado (fálico), o homem crê que é único, que é assim que marca seu lugar no mundo (não é a toa que animais mijam ao redor de seus territórios para demarcá-los. Já que estamos falando de falo, de onde vem esse xixi?). Esse é um lado da dialética. O outro, é a mulher que, teoricamente impossibilitada de ter um falo para lhe ancorar no oceano simbólico, navega (aparentemente) à deriva.

Na verdade, é como se os códigos simbólicos não capturassem a peculiaridade da mulher, e fossem uma espécie de idioma estrangeiro no universo feminino. Isso porque cada mulher (e tento, da minha forma canhestra, pensar o que eu leio nessa idéia da psicanálise lacaniana) é, em tese, única. Por isso ela é inapreensível simbolicamente. Por isso, toda mulher ganha o dia ao ouvir seu homem dizer que ela é insubstituível. Por isso, as meninas que fantasiam com príncipes encantados, e elas enquanto princesas – a coroação e o reconhecimento de serem únicas. Os homens, por sua vez, tem uma distinção aparente, superficial. Em profundidade, o mesmo não se daria. Por isso a obsessão em ser fálico, em ter um carro possante (e mostrar pra todos que seu som é alto), e até mesmo exibir um corpo enorme todo esculpido em academias. É na superfície do social que o homem se crê único.
A identidade da mulher se distingue da do homem nesse ponto – cada mulher é única naturalmente, enquanto homens o são simbolicamente. Entretanto, se a mulher é única, mas inapreensível simbolicamente, então ela teria uma espécie de “liberdade poética” entre os simbolos. Não há comprometimento com um “eu-lírico”, com uma voz rígida, assim como acontece com os homens, que buscam por uma postura íntegra. A mulher é pura fluidez. Se ela tem tantas peças em seu guarda-roupa, tantos sapatos e maquiagens, é porque ela assume variadas maneiras de se representar socialmente. E a mulher não se perde nessa brincadeira justamente por ser única. Diferente do homem, que marca seu espaço através da rigidez fálica, do rigor de sua representação. Esse homem precisa fazer isso porque, do contrário, se perderia no universo simbólico. Ele precisa ser fiel a seu papel. Os papéis sociais, as representações, constituem sua identidade e sua voz.
Foto: Paloma Parentoni

Fica mais fácil visualizar essas diferenças a partir da oposição “razão X afeto”. O estar-no-mundo masculino geralmente se dá pela via racional, e é a razão que compõe o paradigma ainda em vigor nas sociedades humanas ocidentais (e patriarcais). Esse é o esqueleto que sustenta nossa vida comum, é nossa herança cultural. E é característica da razão ter limites bem definidos – “definir”, aliás, é o que a razão faz. A razão cria cercas, margens, regras. É através da razão que nos tornamos cidadãos “razoáveis”, ponderados, comedidos, cautelosos até. É uma necessidade de controlar a vida.

Não é a toa, penso eu, que “vida” é substantivo feminino. Ela escapa ao simbólico, é inapreensível. Viver é como escrever, e, como bem disse Virgínia Woolf, os escritores não se preocupam com escrever, mas sim com outras coisas[i]. Escrever, assim como viver, não é um fim em si, é atividade que aponta para outro lugar.
Viver imprevisivelmente é viver para além do simbólico, e assumir o imprevisível é ver de outra forma. Etimologicamente, “imprevisível” que quer dizer “não ver antes” (do latim, in: não; prae: antes; vedere: ver); ou seja, não usar da razão para tentar antever as coisas. É abraçar o imprevisível, viver com outra forma de ver: é devir.
Para Deleuze, a maneira masculina de estar-no-mundo é dominadora, é uma forma de expressão que tenta se impor a toda matéria. As mulheres, contudo, escapam da sua própria formalização; apresentam o que ele chama de “componente de fuga”[ii]. Mas surge a dúvida (racional): se esse estar-no-mundo da mulher é indiscernível, em que solo simbólico pisam seus femininos pés?
Foto: Carla Evanovitch

Elas habitariam o que Deleuze chama de “zona de vizinhança”, esse espaço que se situa fora das margens simbólicas, das categorias que a razão adora delimitar. O tal “entre-lugar”, do qual fala Homi Bhabha[iii]. Para mim que sou mineiro, vizinhança tem um “quê” de encontro, de ir até a casa do vizinho tomar um café, prosear a toa, tem algo de esquina, clubes e amizades. É uma zona imprevisível, porque não podemos mapear o outro – apenas acolher ou rejeitar.

Assim, penso que o estar-no-mundo feminino tem algo de afeto, pois é justamente essa dimensão afetuosa que serve como complemento à lógica racional. E o afeto se manifesta na indiscernível área entre dois corpos, entre dois seres que se encontram. Quando estamos com nossos amigos, não somos nem nós, e nem eles são eles, mas todos se tornam o devir que paira sobre os afetos. As máscaras perdem o sentido em todo encontro sincero, por causa do choque de “eus”, que afrouxam suas cercas e portais para se abrir ao outro, que por sua vez estão também afrouxados e sacudidos.
2 – Escorregando a discussão para algumas atualidades
2.1. “Macrontemporaneidades”
Foto: Paloma Parentoni

Essa ótica do afeto, que quebra qualquer tentativa de delimitar racionalmente projetos de identidade, é facilmente detectada nas manifestações contemporâneas, que tomaram o Brasil em junho de 2013. Não quero entrar aqui em alguns méritos já muito discutidos na web (coisas como situar os protestos brasileiros em relação aos de outros países, nem relembrar os anteriores protestos de décadas no país para refutar a máxima “o gigante acordou”, blablabla.).

Muito se falou também sobre a ausência de pautas dos protestos, e seu caráter, por assim dizer, apartidário. Uma frase que me chamou a atenção em meio a tanto “diz-me-diz” (e que agora não consigo rastrear a fonte. Transcrevo-a de memória): “Quem acha que está entendendo os protestos, não entendeu nada“.
Por isso, acredito nessas manifestações como sendo “massas de devir”, imbuídas de um caráter, dentre outras coisas, feminino – e digo isso nesse sentido de escapar ao simbólico. E não só escapar, mas se posicionar contra o arcabouço simbólico vigente. É outra perspectiva que se apresenta. As instituições, as práticas sociais, as políticas públicas, nada disso foi poupado. As depredações eram tão somente a materialização desse desejo de romper com o que aí encontra.
Foto: Carla Evanovitch

Mas mesmo as depredações (que diversas evidências revelam ser infiltrações de grupos alheios) não parecem dizer muito sobre as manifestações. As vejo femininas também nessa dimensão do acolhimento, nessa postura de dizer “pode vir” (e que, brincando com as palavras, soa parecido com “pró-devir”). O encontro com o outro é a cola que une essas pessoas (não apenas jovens, vale lembrar). Não é a toa que Gilberto Gil se referiu a elas como “raves”. Há algo de celebração nisso tudo, de festivo. É bem pagão, dionisíaco, carnavalesco – subversivo não nesse sentido, mas nesse “sem-sentido”. Elas bradam contra os tecnocratas de terno bem passado, com discursos que se valem de palavras complicadas e rodeios retóricos, visando confundir mais do que explicar.

Sinto a movimentação feminina nesse viés. A razão, essa faca de dois gumes – que o sistema tem usado mais para ferir os seres do que para desbravar novas possibilidades – é enfim refutada. Ela tempera os protestos, mas não constitui o prato principal. 
2.2. “Microntemporaneidades”
Saindo da tônica dos protestos, concluo esse ensaio comentando sobre duas iniciativas mais, digamos, localizadas, e que me chamaram bastante a atenção (foram elas, aliás, a mola propulsora para que eu escrevesse tudo isso). São obras que parecem assumir representações mais artísticas que políticas, ao propor novos olhares para o mundo que nos cerca. Na verdade, elas afirmam o que Suely Rolnik chama de “rigor ético, estético e político”[iv], a um só tempo. Nos dois casos, afetos assumem formas outras, metafóricas. E, claro, ambas foram idealizadas e são realizadas por mulheres.
Foto: Paloma Parentoni

Em O Trajeto do Afeto, a artista belo-horizontina Paloma Parentoni propõe o que ela mesma trata como um misto entre ação poética, intervenção urbana e oficina artística. Barquinhos de papel surgem como metáforas do afeto, como que representando ludicamente o próprio devir das relações entre os seres. Na fanpage do projeto no facebook, as fotos e vídeos evidenciam o quão lúdicas são essas intervenções. Não há limites para as práticas: quaisquer pessoas de qualquer idade, gênero, classe (e o que mais for definidor de identidade) podem participar, já que o cerne da oficina é a doação de afeto e suas implicações.

Mais que apenas exercitar afetos, a trajetória dos barquinhos incita a observação: enquanto eles navegam (simbolicamente ou não) em busca de novos rumos, eles ensinam, para além das palavras, o que é afeto e o que isso suscita em nós. Observar a lânguida caminhada das frágeis embarcações são oportunidades privilegiadas de refletirmos e vivenciarmos ternura, amizade, benevolência – em suma, amor.
Foto: Carla Evanovitch

A iniciativa de Carla Evanovitch também se dá por essa via do afeto, mas é mais subjetiva que a de Paloma. Sua proposta, intitulada Teremos um Jardim, trata do singelo cultivar de jardins imaginários (ou imaginados). O universo em que esse jardim existe é, nas palavras de Carla, “mais sensorial e menos descritivo”. Em vez de compensar seu desejo de semear com esses joguinhos de facebook tipo farmville (com todo o respeito aos apreciadores), ela optou por materializar poeticamente o ritual de plantio, do cultivo, da espera e do florescimento. Aqui, algumas das nossas práticas humanas são tratadas na metáfora dos jardins, como se lembranças fossem folhas outonais, e os girassóis fossem botões de puro afeto, dentre outras imagens que se possa imaginar (ou jardinar).

E a matéria poética tem tudo a ver com a atividade do cultivo. Dentro do signo “palavra”, temos já a idéia de lavra – e a própria palavra “signo”, por sua vez, etimologicamente vem do grego “semeión”, que alude de alguma forma (se não no significado, pelo menos na sonoridade) à atividade de semear[v]. Em ambas, o lúdico é uma possibilidade: ao ser perguntado sobre os motivos pelos quais abandonou a literatura, o escritor Raduan Nassar teria dito que sua vida se tornou “fazer, fazer, fazer, no âmbito da fazenda evidentemente, num espaço em constante transformação, o que não deixa de ser uma outra forma de escrever”[vi]. E ainda mais explicitamente sobre o que o fez trocar uma atividade pela outra: “O que há de lúdico numa atividade você transfere para outra com certa facilidade, desde que você seja sujeito do seu trabalho”[vii].
3. Conclusões?
Foto: Paloma Parentoni

Não sei se há, ou se devam haver, as esperadas conclusões. Assim como os barquinhos de Paloma e as imaginadas “árvores de anzóis” de Carla, as trajetórias em si já se significam. Os afetos não existem nas reflexões racionais a respeito do que representam – eles existem na própria doação desinteressada, na amizade e no amor… e o que mais pode-se dizer sobre isso? Os silêncios decerto expressam mais.

Talvez se possa dizer que essa dimensão afetuosa se encontra escassa (para não dizer “inexistente”) nas lógicas institucionais. Talvez por serem isso mesmo, lógicas. Só me resta dizer que é sempre um encantamento ver mulheres agindo de forma feminina nos ambientes institucionais. Num primeiro momento histórico, a inserção das mulheres nesse outrora masculino e patriarcal mercado de trabalho foi, mais que necessária, revigorante. Agora, o próximo passo poderia ser o de construir canais para que essas características do feminino – de afeto, acolhimento, delicadeza e tantas outras virtudes – possam ser expressas de maneira mais ampla. Imaginem políticas públicas e ações governamentais dessa natureza?
Termino esse texto não com uma inconclusão (já as acumulei demais), mas com uma utopia – a de vislumbrar ações políticas, sociais e culturais tão belas quanto um barquinho de papel ou um jardim imaginado. Ah, utopias, suas belas ilógicas…
*
Ps: eu acredito em sincronicidades, e recebi da amiga Elisa Gomes via facebook esse vídeo abaixo, no exato momento em que colocava um ponto final nesse texto. Podem acreditar. Aviso aos pessimistas: saibam que não vou me lamentar caso queiram duvidar da coincidência que narro… fé é como opinião, cada um com a(s) sua(s).


[i] WOOLF, Virgínia. Apud: DELEUZE, Giles. A literatura e a vida. In: Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997. Pág. 16.
[ii] DELEUZE, Giles. A literatura e a vida. In: Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997. Pág. 11.
[iii]BHABHA, Homi K. O local da Cultura. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2005.
[iv] ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. In: Cadernos de Subjetividade. Dossiê: Linguagens. No2. São Paulo: PUC-SP, 1993.
[v] SANTAELLA, Lucia. O que é Semiótica. São Paulo: Editora Brasiliense, 1999. pág. 7-8.
[vi] NASSAR, Raduan.”Entrevista”. In: Cadernos de Literatura, No2. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1996. Pág. 39.
[vii] Op. cit.

Páginas que se recusam a virar

Imagem por Keltruck Ltd (Flickr)


Em primeiro lugar, meu apoio aos tantos protestos pipocando Brasil afora: não concordo com quem alardeia que esse “espírito revolucionário” inflamando as massas não passa de mero modismo. Aqui, cito Benjamin, que diz que “a moda tem um faro para o atual, onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado” (BENJAMIN, 1994, 230). Ou seja, as modas não surgem por acaso, e resgatam dos escombros da história uma série de coisas necessárias para o presente. Se brotam protestos, é porque precisam brotar.
O triste é pensar o quão medievais e atrasadas são nossas causas. A culpa não é do povo, mas do contexto. Tanto as demandas (preços justos de passagens, direito de liberdade de expressão em praça pública, para ficar só nas pautas gritantes da última semana) quanto a truculência do governo e da polícia são todas histórias de filmes que a gente já viu antes. O Brasil já devia ter virado essa página, e partir para reivindicações mais profundas, mas uma bigorna invisível não deixa acontecer – me refiro a esse peso imenso do descompasso entre as necessidades da população e os desmandos surreais do poder estabelecido.
Fico imaginando as pautas de protestos em países como Finlândia ou Noruega, onde (em tese) os problemas sociais mais urgentes e terceiro-mundistas já teriam sido sanados. Uma sugestão de pauta: protestar contra o modelo dos veículos à gasolina utilizados por talvez 10 entre 10 habitantes do planeta.
Parece discussão de lunático? No Brasil, onde questões como saneamento básico e saúde pública são problemas, pode ser. Mas temos que pensar que já são disponíveis para nossa geração a possibilidade de se construírem carros movidos a água ou luz solar. Então porque perpetuar os ancestrais modelos à gasolina, que não só necessitam de recursos naturais não renováveis, mas que também poluem a natureza em ampla escala?
Podemos detectar frestas do sonhado século XXI nos bastidores da ciência, escondidas nos rodapés de grandes pesquisas, em discretas premissas de alguns estudos. Mas os grandes parágrafos da nossa história acabam sendo um “mais do mesmo”: ditaduras, repressão, governo e polícia despreparados, países subdesenvolvidos, e outras mazelas que a gente conhece na palma da mão. Por isso, me pego perguntando: seriam anacrônicas as pautas dos protestos populares, ou na verdade é a estrutura que se arrasta moluscamente no tempo? Como partir para questões mais profundas, se as urgências superficiais resistem teimosas no topo da lista de prioridades?
Sei que discussões como essa parecem devaneios doidos, mas na verdade quero apenas demonstrar o peso “paquidérmico” do problema: até quando teremos que gritar por demandas que, em teoria, são tão obviamente básicas e necessárias?
*
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

Olhando o Clube por Outras Esquinas

Imagem por Diego (Paseo Común! – Flickr)
No final de 2012, me convidaram para falar em uma mesa redonda no Festival Música do Mundo (que acontece em Três Pontas – MG). O tema era a relação entre os Beatles e o Clube da Esquina. E eis que, em determinado momento desse evento, estava eu a falar sobre a música Coração de Estudante (de Milton Nascimento e Wagner Tiso), eleita como tema das Diretas Já e da abertura democrática, e que representou a eleição de Tancredo Neves à presid…
            E aí, um homem me interrompe, da platéia, dizendo algo que não consegui entender. Pedi a ele para repetir.
            – Tancredo foi eleito por um colegiado!
            – Hmm. – respondi, curioso – e o que eu disse?
            – Que ele ganhou por eleições diretas, populares.
            – Certo. Entendi.
            
          Apesar de tímido, sou tomado por uma certa cara de pau as vezes, o que se revela positiva na hora de driblar o constrangimento. Com a face mais lavada do mundo, retornei ao microfone e disse:
            – Bem, pessoal, voltando, agora corrigindo minha fala, Tancredo Neves foi eleito por um colegiado, desculpem o lapso, bla bla bla, e prossegui falando.
            No final da fala de todos, o homem subiu no palco e veio me pedir desculpas pela intervenção brusca. Eu disse a ele que nada tinha que se desculpar, e que, na verdade, ele me impediu de sustentar uma enorme besteira. Coisas assim me fazem pensar nos perigos de se pesquisar sobre temas como os que eu trabalho academicamente. Mexer com o Clube da Esquina envolve muitas armadilhas: é um movimento relativamente recente, cujos principais integrantes estão vivos e ainda na ativa, e que nasceu em um importante e contundente período histórico do Brasil. Período esse que eu não vivi.
            Pois é… quando o antológico album “Clube da Esquina” completava dez anos de lançado, em 1982, eu era apenas um pequeno ser cujo cotidiano se resumia a choro e leite materno. E a história, para os que chegam depois, sempre acarreta em certa injustiça, pois temos que dar conta do imenso presente e do ainda mais vertiginoso passado – tudo ao mesmo tempo. 
Me pego pensando que todos nós, sejamos leitores, pesquisadores ou apreciadores, temos nossos “pecados” culturais; nossas lacunas de um “saber” dito como essencial: Coisas tipo “você nunca leu Joyce? Não acredito que sequer folheou um livro de Oscar Wilde! Não sabe quem foi Coleridge?? Ohhhhhhhh”. Por mais que sejamos (ou acreditemos ser) cultos, carregamos umas tantas lacunas na nossa ficha corrida. E o pior é que nem fazemos idéia de quantas faltas acumulamos nessa carteira. Por exemplo: tenho plena consciência de que incorro no grave pecado de nunca ter lido Dostoievski, mas só fui descobrir que Tancredo foi eleito por um colegiado no pior momento: falando o contrário numa mesa pública!
            Quanto mais jovens somos, mais “pecados” de leitura carregamos implicitamente – em boa parte, pelo simples fato de ainda não termos tido tempo de ler. E se tratamos de algo que ainda reverbera na memória coletiva das gerações anteriores, é ainda pior. Aumenta-se a chance de sermos “capturados” com a fala repleta de atrocidades. O que fazer? Obviamente, deve-se ler, ler e ler. Muito. Apreender conhecimento, ter algumas informações bem memorizadas, certos nomes e datas-chave, etc. Mas sempre vai faltar a vivência.
            Muitos escrevem e dissertam sobre a contracultura e os anos 60 por vivência. Eu trato sobre o tema por leituras históricas. Porém, tento ouvir seus ecos. São espíritos que ainda reverberam em nosso tempo. No túnel da nossa cronologia coletiva, essas vozes ditas lá atrás ainda podem ser ouvidas, ainda rebatem nas paredes do tempo. Meu esforço está em afinar meus ouvidos, e distinguir o sentido impregnado nessas vibrações ainda existentes. 
            E quando essas vozes começam a se desintegrar no ar, tal qual uma fumaça cujas curvas e cinzas começam a se misturar com o céu azul, enganando os olhos? Resta a observação de seus rastros, das pistas que denunciam sua jornada. Vasculhar a lenha que gerou a fumaça, ir atrás dos lábios e da saliva por trás do almejado som. Livros e pessoas, entrevistas, fatos, dados combinados – um esforço sincrônico e diacrônico. 
            Tolo seria eu se tratasse minha pesquisa como um tótem inabalável. Me sinto no dever de ser o primeiro a reconhecer o quão canhestro é meu trabalho; principalmente na desvantagem de ter nascido anos depois do Clube e de suas principais canções. Contudo, há vantagens: o distanciamento dos anos e das gerações, a perspectiva mais ampla da história, o maior número de fontes paralelas de pesquisa para consultar, a possibilidade de enxergar cronologicamente essa obra tão similar ao desenho das montanhas mineiras – cheia de altos e baixos, mas emanando uma beleza que é perene. Tento traduzir tudo isso no plano objetivo, da maneira que posso, com a dor e a delícia desse específico ponto de vista. Quixotescamente prosseguindo!
(16mai2013)

Como matei Ray Bradbury

(baseado em fatos reais, e em uma dica de Pablo Gobira)

             Antes de mais nada, devo contextualizar a questão para o juri. Dizem que o ABC da ficção científica era composto por Asimov, Bradbury e Clarke. O A e o C já haviam batido as botas e se tornado lendas. Na noite do dia 05 de junho, o B era ainda a única divindade viva dentro do gênero. Ainda não era um deus ex-machina.
O mundo acreditava que Bradbury estivesse vivo – era o que estava escrito em enciclopédias e wikipedias. E estava, ainda. Quanto a mim, sequer sabia que ele era um deus da FC. Ou melhor, sabia de “ouvir falar”, mas não conhecia sua liturgia literária.
            Na noite de 5 de junho, procurei informações sobre Bradbury no google. Porque? A faísca do interesse foi acesa por um livro do autor chamado O Zen e a Arte da Escrita. Ao ler trechos dele, desinteressadamente, me peguei seduzido por seu enlevo. Basicamente, é um livro sobre as razões da escrita: porque e como fazê-la. O alto nível das considerações me faziam crer que Bradbury deveria ser, de fato, um autor instigante. Além de ser o grande ídolo de um dos meus escritores favoritos, Neil Gaiman. O google, como sempre, me forneceu a ficha corrida do homem, e me surpreendeu não só que estivesse vivo, aos 91 anos, mas que também continuava em plena atividade literária. Realmente um deus da FC.
            Eis que no dia 6 de junho, cheguei à rodoviária de Juiz de Fora, e com muito custo consegui achar uma passagem de ônibus disponível (véspera de feriado). Caminhando rumo à plataforma de embarque, dei de cara com uma notícia transmitida no telão central, inacreditável: morre Ray Bradbury.
Como podia ser? Tinha me interessado por ele meio que “do nada”, um dia antes! Fiquei em estado de choque. Seria uma falha na matrix?
Não sei se tenho culpa nessa história. Em minha defesa, alego a sincronicidade junguiana, a lei da atração, carma, e outros fenômenos que parecem ter saído de livros de ficção científica.
Se essa evidência não colar, vou ter que retroceder ainda mais no tempo. Acho que tudo começou há uns anos, quando ergui perigosos tótens (quais deles não seriam perigosos?). Depois de uma infância devotada aos heróis de quadrinhos e a todo tipo de ficção com elementos fantásticos, mágicos e extraordinários, eis que eu tinha sido picado pelo vírus do realismo. Passei a gostar de uma literatura mais calcada no cotidiano, de cinema noir, quadrinhos adultos, e a repudiar coisas que se distanciassem muito disso. Talvez precisasse gostar de coisas sérias por estar me levando muito a sério, vá saber.
            Com o tempo, esses tótens foram perdendo seu magnetismo, e me dei conta de que tanto o realismo quanto o absurdo dentro da ficção são feitos do mesmo barro. São diferentes só enquanto gênero, mas o caráter ilusório é tal e qual. Ambos só se tornam bem construídos e verosimilhantes quando o autor consegue amarrar bem sua trama. No fundo, eu tinha ficado “de pirraça” de muitos autores que poderiam ter tanto a me dizer.
            Reconciliado com alguns ídolos da minha infância, novamente tratei de ampliar meu leque de leituras, e foi aí que o B do ABC foi aparecendo aos poucos pra mim. Primeiro quando li um artigo que tratava de escritores de ficção científica que transcenderam o gênero, munidos de perspicácia e de genuínos méritos literários. Bradbury era citado com louvor. Meses depois, ao ler o livro de contos Coisas Frágeis, do britânico Neil Gaiman, me surpreendi ao vê-lo tecer infindáveis elogios a ele, e se referindo ao norte-americano como “um mestre da arte”. Por fim, eis que vivenciei o enigmático episódio do dia 05 de junho.
        
    — x —
            Julgamento encerrado. Agora é botar o leitor a par do veredicto. A promotoria entendeu que eu deveria ler Crônicas Marcianas para me redimir da absurda lacuna que arrastei durante anos. Para poupa-los do meu depoimento final, basta dizer que concordei com o júri sobre o grande valor da prosa bradburiana. 
No presente momento, minha pena já se encontra cumprida. A leitura de cada uma das peças que compõem Crônicas Marcianas me fizeram refletir sobre o delito, e a constatar o quanto foi equivocado ignorar um escritor de tal calibre.  
            Apesar dos pesares, percebo que foi inusitado e mágico ter me encantado pela primeira vez com um texto de Ray Bradbury talvez no exato momento em que ele se despedia do nosso planeta. E agora, enquanto ele provavelmente descansa numa sonda espacial ou em um universo paralelo, continuo a caça de Fahrenheit 451 e outras belezas.