Uma crônica disfarçada

Passeando e pensando a partir das ruas de Macapá

Tenha isso em mente quando sair para caminhar em Macapá: vá muito cedo ou vá relativamente tarde. Caso contrário, a sensação será a de ter o sol preso na etiqueta da sua camisa, como se o astro-rei te seguisse muito de perto. Tenho dificuldade para abrir mão das manhãs em prol de algo físico, já que, nas primeiras horas do dia, rendo bastante nas tarefas de trabalho ou na escrita. As caminhadas acabam ficando quase sempre para depois das 18h.

Eis que saio pelas avenidas amplas do meu bairro (para um mineiro do interior, espanta como algumas ruas em Macapá podem ser tão largas), desfrutando da brisa sempre forte e bem vinda, típica da cidade. Sempre que avisto tal combinação de vermelho e verde no pôr do sol, penso que é Deus implorando para que um novo Turner ou Monet surja nas florestas amazônicas e imortalize esse espetáculo.

Enquanto atravesso um cruzamento de movimento até modesto em pleno horário de pico, penso que o fim de semana está se aproximando, e preciso fazer o texto da newsletter. “Não seria engraçado se o texto fosse uma crônica sobre a própria newsletter?”, penso. Um artifício literário daqueles. Calma lá, Rafael, pega leve. Ainda não existe categoria no Jabuti para quem escreve nesse suporte. Considere que seus leitores trabalharam por toda a semana, e a última coisa da qual precisam nesse sábado é de alguém que pavoneia-se com a própria literatura.

Passo pelo lava-jato “Pulo do Gato”, onde sempre deixo meu carro para limpar vez ou outra. Hoje o dono (conhecido como “Gato”, claro) não está lá; mas vejo um gato de verdade me encarando (de acordo com o dono, é o mascote da empresa). O passeio alto me leva até o muro da Escola Municipal Rondônia, identificável pelas árvores frondosas cujas copas invadem a calçada com a mais generosa das sombras. É uma pena que não defendam um plano diretor em Macapá que permita corredores arbóreos como esse. Os antigos dizem que a capital era bem mais fresca na época em que mais árvores estavam de pé. E as pessoas no mundo inteiro achando que ter um novo Iphone é sinônimo de “evolução”…

Volto a pensar na newsletter quando sou obrigado a esperar o intenso fluxo dos carros na Avenida Jovino Dinoá. Tem sido um trabalho árduo escrever um texto por semana. As vezes, recorro à safadeza, e pego textos escritos há uns meses para dar uma “polida” neles e publicar. Claro que, não raro, essa “polida” dá tanto trabalho quanto escrever um texto novo. E tem um problema. Em termos de continuidade, essa estratégia impede que eu crie uma narrativa mais ampla entre os textos – trazendo conteúdos que dialoguem com o que publiquei na semana anterior, por exemplo. Mas tudo bem, afinal, a Netflix faz isso melhor do que eu.

Passo pela casa da vizinha dos periquitos. Eles “falam” tão alto que um desavisado pode chamar a polícia achando que é briga. A senhorinha que toma conta deles está sempre sentada na cadeira de plástico com olhar sorridente, enquanto a dupla de penas verdes desfila seu escândalo habitual. Atento ao colóquio dos bichinhos, quase pereço diante de um ciclista apressado e pouco hábil com seu veículo, mas consigo desviar a tempo.

Na verdade, a experiência de escrever semanalmente em uma newsletter tem sido nova para mim. Até por não ser jornalista de formação, nunca lidei com a incumbência de produzir conteúdo regularmente. É legal conseguir manter essa regularidade, mas devo confessar que não fui capaz de ajustar a temática geral das newsletters. Dizem que as mais bem sucedidas são dedicadas à um nicho específico. E não as que publicam um texto sobre o Pink Floyd em uma semana e sobre o Leonardo di Caprio na outra.

Enquanto faço o nome-do-pai na frente da Paróquia Jesus de Nazaré, fico pensando se não seria melhor escrever crônicas semanais em vez de ensaios. “Por que raios (sim, raios, e não diabos, estou na frente de uma igreja!) achei que escrever textos reflexivos e ensaísticos no meu tempo livre da universidade seria uma boa ideia?”, pensei. A verdade é que, em meus projetos de escrita, eu sempre ajo como os personagens dos faroestes de Sérgio Leone: atiro primeiro e penso depois.

Na mais pura covardia e cara de pau, considero então a hipótese de escrever um ensaio disfarçado de crônica. Logo descarto a ideia, parece uma falta de respeito. Depois, volto a considerar a possibilidade. Os bons leitores gostam de ser conduzidos a lugares insólitos. Isso é diferente de enganá-los, como fazem alguns autores negacionistas. A quebra de expectativas só é ruim quando a agência de turismo trocou a sua passagem com destino ao Caribe e te enviou para a Patagônia, achando que você ia preferir se refrescar no sul dos Andes. Já na literatura, a subversão pode ser uma coisa boa.

Quando passo em frente ao Seminário São José de Macapá, ouço ao longe a conversa de uma senhora com seu bebê de colo e as amigas (parentes?), todas soando como se falassem em francês ou até mesmo em créole (língua materna de muitas pessoas da Guiana Francesa, região vizinha ao Amapá). Não consigo entender muita coisa. Acho graça do fato de que estou naquele exato momento refletindo sobre o ato de uma pessoa se fazer entender – por escrito ou não.

Parece uma coisa mesquinha ou corporativa demais pensar que um projeto de newsletter precisa ampliar seu público de leitores para ser uma experiência bem sucedida. Por outro lado, penso que todo artista e autor precisa buscar o aperfeiçoamento constante de seu ofício, e isso não diz respeito apenas a escrita em si, mas também aos meios de fazer circular o que produz.

A palavra-chave que estou procurando aqui é essa: vocação. Taí um conceito fora de moda nesse mundo cético e neoliberal, onde tanta gente está procurando formas de ganhar dinheiro, não importa para que finalidade: sobrevivência ou ostentação. Quase todo mundo acha que possui menos grana do que devia, e isso leva a priorizar o vil metal em detrimento da vida em si. Espertos são os que entenderam essa armadilha e encontraram rotas de fuga.

Em outros tempos, já me senti meio deslocado ao sustentar a crença na vocação, ao defender que você pode ser mais pleno na vida quando exercita o seu dom e o oferece para a comunidade. Dito assim, parece algo cafona, bicho-grilo, e até messiânico. Mas é uma ideia que me move, e pela qual não estou disposto a me desculpar. Você pode acreditar na vocação mesmo que não seja a partir de algum tipo de dogma ou discurso religioso. Talvez seja apenas uma intuição que assola sua mente em algumas horas do dia, e depois se esvai quando você lembra das contas a pagar. Não importa de onde venha a ideia: ela só precisa fazer sentido.

Enquanto caminho pela borda da ciclovia da Avenida Hamilton Silva, na contramão do fluxo dos carros, penso que talvez o formato da newsletter seja mais adequado para crônicas em vez de ensaios. Ainda bem que não tenho patrões forçando minha fidelidade a uma linha editorial qualquer. Ao modo dos artistas psicodélicos dos anos 1960 ou dos alquimistas do período helenístico, posso me dar ao luxo de experimentar com o que faço. Afinal, a atividade de escrita provavelmente é mais segura do que, sei lá, produzir fraldas ou airbags (“hah! Diga isso para Jean-Paul Marat, que escrevia para o jornal L’Ami du peuple – O Amigo do Povo –, publicação política que insuflou os parisienses a seguir adiante com a Revolução Francesa”, diz uma voz na minha cabeça). 

Enfim, mesmo sem conclusões muito coerentes, viro na Avenida Padre Manoel da Nóbrega e traço a rota de volta para casa, feliz por ter um esboço de tema para brincar.

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Quando o realismo puxa a espada

Em tempos de decolonialidade, identitarismo e pós-modernidade, o que sobrou para a literatura de fantasia?

Certo dia, uma autora que sigo nas redes sociais publicou um post comentando o livro Animal, da escritora e jornalista norteamericana Lisa Taddeo. Em sua breve e informal resenha, a autora destacava (aqui, escrevo com minhas palavras) a qualidade de se tratar de um texto escrito sob a perspectiva de uma mulher potente, que não pede desculpas para ninguém, e que diz com todas as letras o que realmente pensa sobre os homens (não são pensamentos lisonjeiros). A autora do post arrematava com a afirmação de que os homens deveriam parar de ler histórias com “elfinhos” e ler as obras de Lisa Taddeo.

O espantalho que ela traz para a punch line no fim do post não é outro senão as atualizações do gênero épico para a contemporaneidade, no que convencionalizamos chamar de fantasia (não confundir com o fantástico ou o realismo fantástico, que são bem diferentes). No século XX, autores como J.R.R. Tolkien definiram o protótipo dessa recriação temática, que se tornaria um filão rentável e popular em diversas mídias ao longo dos anos. Seja no audiovisual, quadrinhos, ou literatura, as histórias de fantasia rendem alguns dos mais lucrativos produtos da indústria do entretenimento recente.

Eu consigo entender porque alguém reduz a fantasia ao rótulo de histórias de “elfinho”. Para começo de conversa, existe o preconceito de que seriam narrativas de caráter infantojuvenil, constantemente vistas como “coisa de criança” aos olhos dos supostamente “verdadeiros” especialistas em crítica literária. Além disso, algumas das obras tradicionais ou mais conhecidas desse gênero trazem valores que podem ser interpretados como sendo conservadores. Se pegarmos os autores da primeira metade do séc. XX, como Tolkien, C.S.Lewis e outros, encontraremos uma visão de honra e de ética que podem ser lidas como antiquadas (sem contar que, apesar da inspiração nos mitos pagãos do Norte da Europa, Tolkien e Lewis eram cristãos inveterados).

A fantasia do século XXI é bem menos restrita nesse recorte moral (quem assistiu a série televisiva de Game of Thrones percebeu isso muito bem). Mas, para muitos espectadores e leitores do sexo masculino, o que realmente importa envolve menos os códigos de conduta ou as questões morais, e sim os personagens masculinos com seus uniformes de guerreiro e espadas no melhor estilo Conan o Bárbaro. Creio que essa é a chave para decifrar a crítica que li no post. Pois, ainda que o gênero de fantasia tenha tido uma bem-vinda renovação de público nos últimos anos, seus detratores não são poucos.

Na minha trajetória de leitor literário, creio que fiz o oposto do que a autora recomendou: abandonei as histórias de “elfinho” e mergulhei em livros realistas e militantes. Aos 21 anos de idade, iniciei o curso de Letras, e a literatura de fantasia não era mencionada nas nossas aulas nem como nota de rodapé.

Devo dizer que eu não era um leitor assíduo de obras de fantasia. Venho de uma família de classe trabalhadora do interior de Minas Gerais, e cresci em uma era pré-internet, ou seja, meu acesso a esse tipo de livros não era tão amplo e facilitado quanto eu gostaria. Meu contato mais considerável com esse gênero foi através de quadrinhos que conseguia encontrar nas bancas.

Mas vejam só a ironia. Aos 22 anos, eu estava no terceiro período de Letras, e as demandas do curso me levavam a estudar pelo menos dois tipos de obras: as do cânone literário (romances, contos e poemas ditos “clássicos”, todos esses que conquistaram lugar cativo na história da literatura) e também obras que propunham um “contra-cânone”, na tentativa de reabilitar a literatura de países e regiões que foram ou são colônias, bem como obras de autores que escreviam sobre minorias representativas (que discutiam questões de gênero, raça e classe). Pois foi justo nesse período que tive a mais intensa experiência de leitura com uma obra de fantasia.

Lembro que morava em um bairro chamado “Fábricas”, que, em outros tempos, foi um reduto de operários das empresas têxteis de São João del Rei. Na época, quase todas as casas eram feitas no mesmo modelo, o que dava um aspecto de subúrbio americano ao lugar. Várias dessas casinhas idênticas eram repúblicas estudantis.

Certo dia, eu e um amigo visitamos a república de alguns amigos, e fomos apresentados aos novos moradores: dois irmãos que adotavam um estilo “gótico” ou dark, e pareciam ter saído diretamente de algum club britânico de Manchester ou qualquer cidade do auge do pós-punk dos anos 80. Apesar de não ter estreitado uma amizade considerável com os irmãos, eles compartilharam um presente fundamental para minha formação cultural: um CD de MP3 com algumas músicas de um trio escocês cujo nome demorei para memorizar.

Foi a primeira vez que ouvi o som mágico dos Cocteau Twins. Aquele CD trazia quase todo o disco mais famoso dos criadores do dream pop: Treasure. Tinha também algumas músicas do álbum que se tornaria o meu preferido deles, Four Calendar Cafe.

Por alguma coincidência feliz do destino, nessa mesma época eu tinha ganhado de presente do meu pai o livro Stardust, escrito por Neil Gaiman e ilustrado por Charles Vess. Quando comecei a ler, liguei a trilha dos Cocteau Twins, apenas para descobrir que aquelas músicas pareciam ter sido feitas para o livro de Gaiman. Essa combinação da narrativa ilustrada de fantasia com as músicas etéreas dos CT trouxeram a mais profunda imersão que já experienciei com obras de arte. Eu passava horas lendo, com as músicas no repeat, e, quando acabava, é como se eu tivesse tido uma verdadeira alteração de consciência, como se eu estivesse dentro da história.

O enredo é centrado no protagonista Tristan Thorn, um jovem que mora em um vilarejo de estilo medieval, que vive entediado como quase todo adolescente, até a noite em que avista uma estrela cadente caindo dentro de uma floresta cujo acesso é proibido. Thorn atravessa o muro de pedra que separa sua realidade sem graça de um mundo mágico onde existem bruxas, fadas, piratas em navios voadores – e, o principal, onde uma estrela cadente pode ser uma mulher. Estruturalmente, é um típico romance de formação (bildungsroman), assim como o são Demian, de Hermann Hesse, ou O Apanhador no Campo de Centeio, de Salinger, mas que utiliza símbolos e motivos do gênero de fantasia.

Lembro vividamente de um fim de semana em que devorei muitas das páginas enquanto ouvi o CD dos Cocteau Twins umas mil vezes. Estava na casa dos meus pais, em Congonhas, e saí para caminhar sem saber se buscava algum vestígio de realidade ou se continuava saboreando aquele universo de imagens mágicas. Era época de outono, e cada árvore ou ipê típicos do interior de Minas pareciam com as espécies ancestrais da floresta mágica de Stardust.

Mas todo esse encanto durou pouco. Meses depois, acabei emprestando o livro de Gaiman, e nunca mais o consegui de volta (tenho em PDF hoje em dia). Não me importei tanto na época, pois, com o avançar do curso de Letras, acabaria negligenciando os livros de fantasia como sendo obras de entretenimento sem muita profundidade. Para fazer média com meus professores e meu meio social, tratei de ler apenas obras pertencentes ao cânone da alta literatura ou ao contra-cânone dos Estudos Culturais. Com ênfase, claro, em obras que hoje em dia chamamos de decoloniais, várias delas com tramas naturalistas e realistas, todas com forte apelo social e político.

Da maneira como enfatizo as obras lidas no curso de Letras, fica parecendo que não tenho muito apreço por elas. Eu gostava, e ainda gosto. O que quero ressaltar aqui, na verdade, é como o gênero de fantasia apresenta também suas qualidades e pontos fortes. No fim das contas, o valor estético e ideológico das histórias de fantasia não precisa ser posto à prova através de comparações forçadas ou de estereotipias.

Ainda hoje, continuo lendo e estudando obras canônicas, mas também reintegrei leituras de fantasia na minha rotina, e, em 2023, até cheguei a publicar um artigo sobre Tolkien em uma prestigiada revista acadêmica, marcando uma inédita aproximação acadêmica com os estudos de fantasia.

Como eu disse antes, entendo porque um leitor do cânone pode menosprezar as obras de fantasia. O pacto de verossimilhança proposto nessas histórias inclui seres como dragões, magos e, claro, os tais “elfinhos”, o que parece esvaziar qualquer tentativa de pensar nesses textos como panfletos políticos ou militantes de algum modo.

Claro que, na minha opinião, devemos debater e relativizar a lógica estrutural do machismo, e, corroborando a autora que citei no início do texto, devemos sim ler escritoras como Lisa Taddeo. Mas isso não implica em menosprezar as histórias de fantasia. Essas obras trazem uma maneira diferente de cultivar laços com nossa ancestralidade, com toda uma simbologia que remete ao mundo natural, e que traz ecos profundos da galeria mítica que habita nosso inconsciente coletivo.

Sei que alguns desses conceitos parecem risíveis para qualquer adepto das teorias pós-modernas ou identitárias. Mas sou dos que acreditam que as histórias de fantasia – ou os contos de fadas, a epopeia moderna e outras variantes – podem nos oferecer conteúdos ricos e relevantes em vários sentidos também.

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O dilema de Jack e Rose: congelar a juventude ou envelhecer com dignidade?

Ele ficou conhecido por namorar meninas com menos de 25, e ela tornou-se uma ativista do envelhecimento sem cirurgias.

Se há um filme sobre o qual podemos falar abertamente do final sem nenhum receio de dar spoiler é Titanic – quem não o assistiu? Ainda que não seja propriamente a cena derradeira da obra, todos se lembram do último encontro entre os protagonistas Rose DeWitt (Kate Winslet) e Jack Dawson (Leonardo DiCaprio). Enquanto a moça consegue se proteger das gélidas águas do Oceano Atlântico com uma salvadora porta flutuante, o pobre Jack cai vítima da hipotermia fatal, partindo o coração não apenas de sua amada, mas de bilhões de pessoas ao redor do mundo (sim, esse número não é exagero. Trata-se do quinto filme mais assistido de todos os tempos).

Como o filme é baseado em um fato histórico (o naufrágio do navio britânico Titanic), muitas pessoas acreditam que Jack e Rose existiram e que sua história de amor é real. O fato de Jack ter morrido no fim parece reforçar a ideia de que se trata de algo verídico: o casal nem fica junto (como é de praxe em quase toda comédia romântica), e nem morre junto (como em Romeu e Julieta, de Shakespeare).

Só que os manda-chuvas em Hollywood sabem que a melhor maneira de lidar com essas dúvidas é deixa-las no ar. Oficialmente, não apenas Rose, como o carismático artista Jack Dawson são personagens fictícios. Entretanto, depois do lançamento de Titanic, os produtores do filme alegam ter encontrado o túmulo de um J.Dawson no Cemitério Fairview, em Nova Escócia (onde estão os corpos de pessoas que morreram no naufrágio).

Existe uma inerente ambiguidade por trás das mortes de pessoas jovens: por um lado, o caráter inesperado desses acontecimentos certamente despertará sentimentos de tristeza em todos os familiares e conhecidos do falecido. Por outro, a posteridade de quem parte tão jovem acaba sendo revestida de uma aura especial, quase que um inevitável glamour. Afinal, trata-se de alguém que não exibiu publicamente a sua decadência. Ao morrer jovem, a pessoa meio que sai “à francesa” da festa da existência. Deixa o salão quando o coquetel ainda estava sendo servido. Por isso, será sempre lembrado no auge de sua beleza e de suas capacidades físicas.

Leonardo DiCaprio e Kate Winslet tinham, respectivamente, 23 e 22 anos quando Titanic foi lançado em dezembro de 1997. Ele já era um astro em ascensão (participou de uma popular versão de Romeu e Julieta em 1996); e ela já tinha conquistado um prêmio BAFTA por interpretar Marianne Dashwood em Razão e Sensibilidade (1995). Mas foi a interpretação no filme de James Cameron que os levou ao estrelato global. Ao longo dos anos, ambos continuaram amigos, e acabariam fazendo outro filme juntos em 2008 (Apenas um Sonho, de Sam Mendes).

Em comum, a trajetória profissional do casal é marcada por papeis marcantes em filmes de diretores respeitados. Leonardo tornou-se “carta marcada” em diversos filmes de Martin Scorcese. Os dois venceram os maiores prêmios da indústria do cinema, como o Golden Globe Awards ou o Oscar. Entretanto, existem nuances da vida pessoal de Winslet e DiCaprio que marcam profundas diferenças de postura e pensamento, cuja comparação parece um tanto quanto curiosa.

Kate Winslet sempre comentou em entrevistas sobre como valoriza sua vida familiar. Bem antes de Titanic, aos 15 anos, ela namorou com Stephen Tredre, doze anos mais velho que ela, e esteve com ele até sua morte por câncer ósseo em 1997. O segundo marido de Winslet, Sam Mendes, é 10 anos mais velho que a atriz. Ela está atualmente em seu terceiro casamento.

Já Leonardo DiCaprio tornou-se conhecido por seus namoros rápidos, e sempre com garotas bem mais jovens. No caso do ator, os tabloides descobriram que há um curioso padrão em seus relacionamentos: a idade limite de 25 anos para suas companheiras da vez. Após ultrapassarem essa idade, DiCaprio termina a relação e parte para outra (aparentemente, o padrão foi quebrado em 2024, visto que o americano completou pouco mais de um ano de namoro com Vittoria Ceretti, de 26 anos).

Ainda que DiCaprio relute em falar da vida pessoal em entrevistas, a mídia frequentemente está atrás de novos escândalos do ator (como quando ele foi ferido na cabeça por uma garrafa quebrada em 2005, após uma controversa e mal explicada briga com a modelo Aretha Wilson). Se, por um lado, Leonardo ficou conhecido como uma das principais celebridades de Hollywood envolvido em causas ecológicas, apoiando diversas instituições que realizam ações contra o aquecimento global, sua vida privada permanece no escrutínio público por conta de seu fetiche com jovens modelos e atrizes.

A diferença de abordagem entre Winslet e DiCaprio não tem a ver apenas com o quesito “idade do cônjuge”. A atriz britânica tornou-se um dos principais nomes de Hollywood a defender o direito de envelhecer de maneira natural. Ao lado das amigas “oscarizadas” Emma Thompson e Rachel Weisz, formou a “Liga Britânica de Cirurgia Anti-Estética”.

Veja só a declaração de Winslet em uma entrevista para a revista Harper’s Bazaar:

“As mulheres ficam mais bonitas à medida que envelhecem, com certeza. Nossos rostos se tornam mais alinhados com quem somos, e se encaixam melhor em nossa estrutura óssea, demonstrando mais vida, mais história. Algumas coisas que acho incrivelmente bonitas são as rugas ao redor dos olhos, ou as costas das mãos”.  

E prossegue:

“Nós nos tornamos mais receptivos a quem somos e como nossos corpos e rostos mudam, e como aprendemos com as lições da vida. Temos que aceitar mais a nós mesmos e às outras pessoas”.

Kate Winslet nunca tentou mascarar sua idade ou se adequar nos padrões de beleza vigentes. Em 2003, ela se envolveu em uma briga pública com a equipe da edição britânica da Revista GQ por alterarem digitalmente sua aparência em algumas fotos, tentando fazê-la parecer mais alta e mais magra. Em 2011, disse ser contra o botox e cirurgia plástica para finalidades estéticas. Em uma entrevista para a Vogue em 2012, disse não concordar com o ideal de beleza de Hollywood, e diz que usa sua influência de celebridade para capacitar mulheres a aceitar sua aparência com orgulho.

Se o tempo passa para todos, cada um lida com esse fato da maneira que lhe cabe e de acordo com os privilégios que possui. Celebridades como Leonardo, Kate e tantas outras que possuem visibilidade e fama acabam por influenciar o grande público através de tantas maneiras de olhar para a sua própria decadência física. Há quem prefira negar ou ignorar a condição do envelhecimento, e há quem queira discutir o assunto de maneira honesta, profunda e sem subterfúgios.

Assim como Jack Dawson, DiCaprio parece, de algum modo, congelado em um desejo pela eterna juventude. Enquanto Winslet, ao modo de Rose, concedeu a si mesma o direito de envelhecer de maneira natural e consciente. O contraste entre essas posturas tão distintas vale uma reflexão sobre diferentes maneiras de encarar a questão do etarismo e da passagem do tempo.

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A mensagem contracultural de São Francisco

O místico que reabilitou a natureza dentro (e fora) do Cristianismo

Em outubro, comemora-se o dia de São Francisco de Assis (no dia 04/10). Considero este um santo fundamental na doutrina católica, porque ele reintroduz alguns elementos até hoje controversos para a Igreja: o amor à natureza, os animais, esse elo mundano que o catolicismo empurrou para debaixo do tapete junto com o paganismo (ou misturando com ele, enfim).

Nesse texto da newsletter, falarei um pouco de um filme que muitos consideram datado, mas que me fez acolher a mensagem de Francisco ainda na tenra infância. Depois comentarei alguns elementos da doutrina franciscana que me são bem caros.

Quando Francisco foi um hippie

Desde a infância, tenho uma simpatia por Francisco, e a semente desse encantamento precoce veio sem dúvidas do filme Irmão Sol, Irmã Lua (no original: Brother Sun Sister Moon). As pessoas da minha geração certamente se lembram dessa obra que a Globo sempre reprisava na Sessão da Tarde. Originalmente lançado em 1972, e dirigido por Franco Zeffirelli, trata-se de uma hagiografia (biografia de um santo) calcada na vida de Giovanni di Pietro di Bernardone (ou São Francisco de Assis).

Zeffirelli repetiu nesse filme diversos elementos que deram certo antes na sua adaptação cinematográfica de Romeu e Julieta (1968), principalmente em relação a fotografia sofisticada e também na dinâmica do casal de protagonistas (Francisco e Clara).

Mas, na filmografia de Zeffirelli, um dos destaques alcançados com Irmão Sol, Irmã Lua foi representar uma versão “hippie” de Francisco. Para não deixar dúvidas de que a intenção do diretor era conscientemente aproximar o santo da contracultura vigente na época, é só prestarmos atenção na trilha sonora, composta por ninguém menos que Donovan.

Peço licença para falar um pouco desse interessante cantor (dado o fato de que é um artista pouco conhecido no Brasil). O bardo escocês Donovan se revelou dentro da cena folk britânica dos anos 60, só que, diferente dos engajados e politizados cantores folk americanos do período (como Bob Dylan ou Pete Seeger), ele estava liricamente mais próximo da psicodelia e do movimento flower power. Amigo dos Beatles, Donovan viajou com a banda para a Índia em 1968, e lá ensinou à Lennon e McCartney uma técnica de violão que seria fundamental para a composição de músicas como “Dear Prudence” ou “Blackbird”.

Uma curiosidade é que as canções interpretadas por Donovan na trilha sonora de Irmão Sol, Irmã Lua nunca foram adequadamente lançadas para além do filme em si – se alguém procurasse um vinil para comprar, iria encontrar apenas a trilha italiana, com letras alternativas (em italiano) cantadas por Claudio Baglioni e trilha incidental de Riz Ortolani.

Donovan diz que passou décadas ouvindo seus fãs cobrarem pelo lançamento da trilha, e sempre respondia que não era detentor dos direitos de gravação, o que lhe impedia de lançar essas versões. Em 2004, o artista finalmente gravou novas versões acústicas (sem orquestra) para esse repertório, reunidas em um disco chamado Brother Sun Sister Moon.

Outra curiosidade do filme é que, apesar do ator responsável por interpretar Francisco ser o inglês Graham Faulkner, por pouco, o santo italiano não foi interpretado por um brasileiro. O cantor e compositor Caetano Veloso morava em Londres nessa época (era seu período de exílio, em pleno auge da Ditadura civil-militar brasileira), e por acaso cruzou com Zeffirelli na rua. O diretor ficou impressionado com o tipo exótico do cantor tropicalista, mas esse fascínio acabaria não trazendo resultados concretos, e Caetano não foi escalado nem mesmo como figurante. Do mesmo modo, o ator Al Pacino – que até chegou a fazer testes para o papel principal – foi julgado por Zeffirelli como sendo muito “teatral”.

Quem assumiu a pele do santo italiano foi um ator inglês, que precisou usar lentes de contato para esconder seus olhos azuis. Graham Faulkner fez poucos filmes em sua carreira, e acabou se aposentando da sétima arte em 1984, quando foi trabalhar em um banco britânico. Ao longo do tempo, isso contribuiu para certa mística em torno de Irmão Sol, Irmã Lua, visto que seu principal rosto envolve um ator que não habita a memória coletiva para além da obra de Zeffirelli.

Faulkner deu uma rara entrevista em 2022, onde revelou detalhes até então desconhecidos do filme. Como o fato de que foram filmadas algumas cenas que mostravam Francisco antes de sua conversão. Entretanto, o diretor achou que o personagem parecia ali muito mimado e irritante, e essa parte não entrou no corte final. Tendo a concordar com o balanço feito por Faulkner nessa entrevista: do ponto de vista dramatúrgico, a retirada dessas cenas foi um baita erro, tornando a história toda muito abrupta e sem contraste entre o “antes” e o “depois” e Francisco.

Apesar dos pesares, confesso que a aura bicho-grilo de Irmão Sol, Irmã Lua me fascinou naqueles anos da infância, quando vi o filme pela primeira vez, significando um verdadeiro um ponto de partida para querer saber mais sobre Francisco. Anos depois, tive contato com diversos livros de autores ligados à Teologia da Libertação, como Leonardo Boff ou Frei Betto, e pude aprofundar esse interesse pela mensagem franciscana.

Francisco e a Igreja Católica

A meu ver, a maior contribuição de São Francisco de Assis para a tradição católica está em readmitir o papel da natureza como manifestação divina. A síntese mais conhecida da sua visão naturalista está no poema Cântico das Criaturas (ou Cântico do Irmão Sol), onde ele enumera diversas entidades e elementos da natureza como sendo seus irmãos e irmãs.

Francisco viveu no período da Alta Idade Média, e a perspectiva contida em seus discursos e práticas é bem diferente do que a Igreja Católica defendia nessa mesma época. As ideias cristãs oficiais em voga vinham da Escolástica, cuja visão ortodoxa considerava o ser humano como sendo vocacionado para dominar e submeter o mundo material/natural de acordo com suas próprias necessidades.

Com o apoio da Igreja, pensadores escolásticos como Santo Anselmo de Cantuária e Pedro Abelardo tentavam aproximar a fé cristã da razão aristotélica, enquanto, ao mesmo tempo (e de maneira um tanto subversiva na época), o italiano Francisco demonstrava uma abordagem espiritual e teológica bastante distinta, ao pregar uma vivência simples do Evangelho baseada na humildade e na comunhão com a natureza.

No período de vida de Francisco (1181-1226), o conceito de “ecologia” ainda não tinha sido desenvolvido, mas é nítido que esse importante santo católico foi um dos pioneiros das práticas e discursos acerca da importância do meio ambiente e da preservação da natureza.

Além disso, não me parece exagerado pensar que a cosmovisão franciscana cumpre a façanha de reintegrar ao catolicismo diversas práticas de culturas pagãs perseguidas pela inquisição. Pois penso ser possível traçar paralelos entre o discurso de Francisco e os registros de tradições celtas, germânicas, eslavas, bálticas e tantas outras.

Levando essa hipótese mais adiante, eu diria que a mensagem de Francisco tenta sanar um suposto problema teológico detectado pelo psicólogo Carl Gustav Jung. Em obras como Aion: Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo (1951) ou Resposta a Jó (1952), esse importante pensador suíço afirmou que diversos aspectos da espiritualidade naturalista e telúrica típica de crenças pagãs foram reprimidos pelo inconsciente judaico-cristão ocidental.

Todos os elementos doutrinários do cristianismo institucional se desenvolveram através da ideia de dominação da natureza. Como as culturas pagãs eram tidas como antagonistas pela Igreja, a elaboração dessa religião oficial só poderia significar o oposto da perspectiva naturalista.

As ideias escolásticas foram um instrumento retórico do cristianismo medieval institucional para revestir sua doutrina de uma intenção racionalista, onde a natureza se convertia em qualquer coisa de útil para as necessidades humanas, mas essa mesma natureza nunca era tratada ou pensada como algo dotado de sacralidade.

Em termos psicológicos, me parece possível afirmar que a perspectiva pagã se tornou uma sombra do cristianismo. Na psicologia analítica, o conceito de sombra aborda aspectos da personalidade (no caso do indivíduo) ou da cultura (no caso das sociedades) que são rejeitados ou reprimidos. Obviamente, esses conteúdos continuam a existir, mas agora não mais na esfera consciente, e sim em um espaço subterrâneo (quase inacessível), que seria o inconsciente. Se esse conteúdo não for reintegrado, ele pode acabar retornando de maneiras desagradáveis – ou, para usar uma imagem cristã, de maneiras demoníacas (não à toa, as representações católicas do diabo remetem a versões do deus Baco/Dionísio, com seus cifres e garfos).

Ao longo da história, diversos sincretismos religiosos podem ser considerados como apropriações pagãs dentro do cristianismo, e mostram como esses conteúdos puderam resistir ao tempo, esperando pelo momento em que seriam reativados e devidamente reintegrados. Lá atrás, Francisco já buscava reintegrar essa sombra à sua maneira, e o fez em uma época repleta de tensão – basta lembrar que, cinco anos após a morte do santo italiano, em 1231, o Papa Gregório IX daria início à Inquisição.

O fato é que Francisco acabou criando uma tradição de dissidência saudável no coração do cristianismo. Isso explica porque ele foi o inspirador da já mencionada Teologia da Libertação na América Latina, doutrina conhecida pelo combate à regimes autoritários e ditatoriais no continente.

Francisco também inspirou o nome e a doutrina defendidos pelo atual Papa Jorge Mario Bergoglio (eleito em 2013). Uma das primeiras encíclicas do Papa Francisco, Laudato Si’ (2015) teve o título e o tema retirados do “Cântico das Criaturas”, e discute a necessidade de cuidar do meio ambiente e do planeta (chamado por ele de “casa comum”). A perspectiva do Papa Francisco, com uma abordagem pastoral que valoriza a renúncia aos bens materiais, a ecologia e o pacifismo, difere da ortodoxia e o conservadorismo visto em Papas anteriores.

Portanto, os elos entre a contracultura e a vida de Francisco no filme Irmão Sol, Irmã Lua não parecem incongruentes. Claro que se trata de uma obra cinematográfica que, sobretudo para o público contemporâneo, pode parecer excessivamente doce, domesticada ou até mesmo irreal do ponto de vista histórico. Mas creio que seu mérito é o de traduzir dramaticamente a essência da mensagem franciscana, de um modo que pareça cativante para pessoas de várias idades.

A maneira como encarei o filme na infância prova que essa intenção funcionou, e, no meu caso, a narrativa dirigida por Franco Zeffirelli serviu como porta de entrada para a doutrina de um dos santos que mais inspiram minha prática e minha visão de mundo.

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